Sunday, October 30, 2005

Festa: primitivo eu sou

Volta e meia a gente dava uma festa. E, nos achando tão modernos, éramos apenas primitivos. Na caverninha escura, todos tateando faces que eram reveladas apenas no pipocar fugaz dos estrobos.

E eu ficava me sentindo um bárbaro, um huno sujo, feio e malvado. Que, após degladiar com inimigos em mais uma batalha e se empatufar com uma coxa de um javali assado (com tecos de gordura enfeitando meu rosto e cabelo), vai se esbaldar em sua pista de dança, entre jarros do vinho mais cafajeste.

Nós éramos os índios que cantavam para os deuses. Os esquimós que faziam sua rave em iglus. A tribo africana que reverenciava o Sol. Os cães que cheiram rabos alheios.

Uma pré-pista de dança. Mas, se pensarmos bem, a essência das festas deve ser a mesma. A questão é celebrar. Retornar ao jardim de infância. Deixar a nossa identidade do lado de fora. Quer dizer, ao menos aquela parte da identidade que vai nos tolhendo desejos que não podem ser expressados em dias de não-festas. Amores expressos.

E eu sorria. E a pouca luz não deixava isso evidente para os outros. Mas não era problema algum. Porque aqui, nas festas que a gente dava, éramos representações de nós mesmos. A lenda dizia que nosso verdadeiro eu era o que estava em jogo, se jogando na pista.

Nos abraçávamos...como nos abraçávamos. A cada pessoa que entrava pela porta, uma nova festa. A festa dentro da festa. Inibições deixadas de lado, o álcool e as drogas entrando no ritual do mundo moderno que exorcizou os exorcismos psíquicos e os deuses e os diabos. Padrão ISO-9000; pegue sua senha e tenha seu exorcismo burocrático, conecte-se ao mundo internético de Marlboro.

Nós conversávamos. Todos nós. E falávamos sobre como tinha sido nosso dia. E falávamos sobre como gostaríamos que tivesse sido nosso dia. E falávamos daqueles que não nos quiseram. E falávamos como teria sido boa aquela trepada. Que nunca aconteceu. Que sempre ficaria para o dia seguinte. Falávamos de como o dia tinha sido difícil, de tantas injustiças no trabalho, e de como fulano e fulana foram escondidos ao banheiro para chorar. No banheiro daqui da festa as pessoas apenas aspiram. E, do lado, de fora, as pessoas batem na porta do banheiro porque têm muita água no corpo.

E falávamos sobre o dia em que não precisaríamos mais dessa necessidade quase religiosa de celebrar. Do dia em que as celebrações não acontecessem apenas durante o final de semana. De um dia em que a vida corresse gostosa segunda, terça, quarta, quinta afora. E falávamos e blasfemávamos sobre tudo aquilo que tentávamos ser, mas não conseguíamos. E de como a amiga sorria disso, e de como amigo chorava e se tornava mais um corpo da massa disforme que adentrava a pista.

Além de huno, eu era uma formiguinha. Uma abelha que, sem saber como nem porque, fazia a rota da flor até a colméia. Como o ganso que, com seu devido cérebro de ganso, voava e se organizava aos outros gansos, magnificamente para sua emigração.

Eu abria as portas e dava a festa. E me dirigia ao bar, e tomava meus líquidos, e sorria para quem eu nunca via sorrir durante o dia, e falava, e dançava, e beijava pelos cantos. Aqui era lugar e hora de esquecer a repressão. Consultório prático, campo de experimentações, lugar de médicos e monstros em confronto, com preferência para criaturas de intensidade sexual e instintiva e fraternal disponíveis aos mais felizes dos seres.

5 comments:

Anonymous said...

ÓTIMO, ÓTIMO, ÓTIMO. Por acaso você tá falando da Torre?

Bruno said...

ufa! que alívio, Nina. Sabe que nem tinha pensado na Torre. Mas serve que nem uma luva, né?

Anonymous said...

eu bem pensei na loca... rs

Bruno said...

é mesmo, né, Eti? Só lugar pra encontrar uma jacas....

Bruno said...

é mesmo, né, Eti? Só lugar pra encontrar uma jacas....