Tuesday, May 30, 2006

O jardim das geladeiras




Costumávamos nos desencontrar constantemente. Era só eu colocar o pé numa festa para não vê-la. Ela saiu agorinha pouco, me diziam, agorinha mesmo, e ela tava te procurando. Outras vezes, quando finalmente nos esbarrávamos pelas linhas telefônicas (e devo dizer que a ligação, abafada e cheia de chiados, volta e meia caía), combinávamos um longo café. Para finalmente colocar a conversa em dia. Ou melhor, para finalmente iniciar uma conversa. Mas apenas combinávamos e fazíamos planos. Não tomava café há anos. Recomendações do meu analista.

Todos nós somos crianças ainda. E essa era a minha brincadeira. Eu não sabia quem era ela. Nunca a deixava se descrever para mim. E você, como você é? Com quem você se parece?, ela não se cansava de perguntar. Às vezes, eu dava uma descrição qualquer. Estatura mediana, óculos e meio moreno, como o moço da propaganda da revista que eu folheava. O mais vago possível. Que diferença isso faz, eu dizia. Sou quem você quiser, não é assim com os outros, moldes ambulantes? Olha só que bela maneira de conhecer alguém. Você vai lá, aborda um estranho e diz: É você? A reposta não importa. Se for sim, o café estará nos esperando. Se for um estranho mais estranho do que eu, o café estará esperando por vocês. Sua vontade de amar vem antes de mim.

Éramos um casal. Namorados? Preferia dizer que éramos dois. Dois mais dois é cinco. As coisas iam entre nós. Éramos remetentes, nunca destinatários. Ela me ensinou a contar. E sempre havia um que incomodava. Um número a mais. Um número a menos. Nunca entendi matemática. Mas lembro que havia algo ausente que sempre torturava. E o elemento a mais que desestruturava. A exceção que desbanca as regras. Ela esboçava minha imagem, e moldava a nossa história.

Testávamos a resistência dos fios de telefone, das lições da matemática. Mas o que mudou nossas vidas mesmo foi o calor dos corpos. Os corpos que envelhecem. Aquele tempo que tanto dávamos as costas. Física, química, biologia, tudo no mesmo saco. Nada de filhos, carro, comida no prato e uma casa linda para nos abrigar. Apenas outras regras. As rugas que disfarçam os amantes. Os cabelos brancos que camuflam e cegam nossos olhos. E o tempo que apagava a memória. E não sabíamos que eram regras.

Até ficarmos mudos e percebemos que não havia mais linhas, apenas ondas eletromagnéticas. Ondas de rádio, radiação. E nossa história teria agora que se propagar pelo ar, sem nenhum contorno definido. Nosso amor se perdia sem os seguros fios para nos sustentar. O tempo era outro.

A máquina de escrever travava. Não havia mais cartas nem ligações. Numa última tentativa, pensamos com muita força para ver se o pensamento viajava pelo espaço. Foi aí que nos vimos pela primeira vez.

Figura borrada no meio da multidão, ela olhava como os míopes sem óculos. Mais do que os olhos, ela forçava seu coração. Exprimia-o com força para ver se ele bateria com um pouco mais de vigor. Tantos anos vivendo separadamente juntos me davam a certeza de que era ela. E no primeiro contato, tantos desencontros forçados vieram cobrar sua dívida. Vivíamos em outro tempo.

Prometi a ela que a partir daquele dia eu leria as bulas. Tudo tem que estar na temperatura certa. A partir daquele dia eu comecei a guardar a margarina na geladeira. Tudo derrete. Eu não queria ver minha manteiga derretida. E ela aprendeu a regular a temperatura. Não ia mais mastigar blocos de gelo. Ficava resfriada.

Mas não conversamos. Apenas nos vimos, e nos falamos agora por telepatia. Sempre há algo que nos separa. Eu vivo em outro tempo. Acho que 1 segundo nos separa. Talvez ela viva 1 segundo no futuro, as mulheres são mais fortes e espertas, você nunca ouviu falar isso no jardim de infância? E você nunca reparou que no jardim da velhice as velhinhas velam seus homens? Te amarei porque sempre há algo que vai continuar fazendo falta, ela mentaliza. E eu capturo suas ondas.