Monday, August 15, 2016

Amor da pedra lascada

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            Penso em você todos os dias, mas ainda não sei quem é você. Por enquanto, você é apenas uma abstração, talvez uma extensão de mim, mas daí penso se não é sempre assim. Tudo que nos rodeia, amigos, amores, parentes, trabalho, objetos, discos, livros, apenas uma extensão dos pensamentos, gostos e paixões, imantada e gravitando ao redor deste fugidio e tão ilusório senso de ser que distraidamente chego a confundir com a tal da identidade.
            Tento imaginar como você seria no outro extremo, no fim de tudo, quando separados, vamos nos afastando mais e mais até um se tornar uma ideia vaga, apenas um conceito destituído de carne que o outro chega a confundir com aquele ser que lá naquele momento anterior era apenas um desejo de si mesmo. Um manancial de potencialidades e futuros prazeres. Um ímã sedutor porque nele eu me dissolvia e por breves instantes não tinha mais a necessidade de ser eu mesmo, e, não tendo essa necessidade de reafirmação de ser eu mesmo, era o caminho do encontro, e não precisava mais falar em eu. Um ser tão amado que chegava a confundir comigo mesmo, e chegava a me questionar por que, enfim, tanta necessidade de ficar me vendo refletido em seus olhos, e ficar procurando pontos em comum, afinidades e diferenças irreconciliáveis, mas mesmo nestas eu me agarrava porque na complementaridade me fortalecia. E não precisava mais ficar citando tanto eu.
            De você, não sei muita coisa. Sei seu nome, seu rosto, o resto é tudo suposição, construção, como um autor em busca de uma história, um artista com uma tela branca. Como um ser humano em busca de um sentido de unidade, que precisa criar uma narrativa básica de identidade para construir seu dia a dia, para não se perder na imensidão da liberdade que é poder acordar cada dia e, assustadoramente, não ser o mesmo de ontem, e a cada dia começar tudo do zero novamente, como um Alzheimer que se inicia a cada manhã. Uma identidade para levantar da cama, lavar o rosto, comprar um pãozinho na padaria antes de ir para o trabalho. E, na volta, trazer um mimo para te agradar.
            Você, no entanto... ou, melhor, a vontade que tenho de você que ainda não conheço, é uma busca por um aprimoramento e um compartilhar de vida e união de forças e mentes e corações que retorna a um estado básico, dos tempos da aurora da vida individual de proteção e reconhecimento e de aniquilamento da sensação tão devastadora da certeza da solidão. Talvez pensar em você seja uma maneira de somar um zero com um zero que resulta nem em zero nem em um. Não digo fusão, confusão. Porque nos confundimos no amor, três meses de pura endorfina, sete anos até a coceira da biologia bater e as crias já andarem por conta própria.
        Você e eu somos potencialidades ambulantes, cada um refletindo à sua maneira os sonhos do outro, cada um enxergando no outro um poder adormecido, um objetivo a ser alcançado, um braço a mais para remar neste barquinho solto num oceano de horizontes sem terra firme. Você é um grande mistério, e assim eu tento te desvendar, e ao tentar te imaginar eu vou me refinando porque vejo que é necessário ser autêntico e verdadeiro e nada esconder, e que de nada adianta ficar preso  a algumas das convenções mais devastadoras, a começar pela convenção de fidelidade a si mesmo, já que o si mesmo ficou lá para trás, aquele que acordou pela manhã e escovou os dentes já não é o mesmo que, agora, cansado ao fim do dia, retorna ao banheiro para escovar os dentes antes de dormir.
           

Monday, August 01, 2016

A ilusão do pensamento original - uma noite em 1994



            – Ele me disse que eu tenho que pensar por mim mesmo, que não devo ficar seguindo o que os outros falam só para seguir a maioria – Daniel estava inquieto, perturbado, com uma conversa que tivera dias antes com sei lá quem. – Mas daí eu questionei: se eu fizer isso, mesmo que seja pensar por mim mesmo, eu não estarei seguindo um conselho seu?
           
            Não vou me lembrar o que disse para ele naquela noite, numa festa em sua casa, provavelmente nada de relevante, só sei que até hoje, mais de 20 anos depois, o questionamento de Daniel me parece válido, de uma sagacidade precoce, existencial, cuja resposta eu ainda não saberia dar. Não é por mero acaso que a cena dessa conversa tão profundamente permanece encravada na minha memória. Talvez porque não haja resposta definitiva, talvez porque ele estivesse correto, talvez porque é um questionamento que absorvi para a minha maneira de encaminhar a vida, talvez porque é uma dúvida que me atormenta. Acreditar que se pensa por si mesmo, independentemente de forças externas, pode não passar de uma ilusão. Mesmo quando não se percebe, não raramente, os atos e os pensamentos são tomados oposição ou por adesão a uma ideia, a um grupo de pessoas, a um símbolo que nivela sutilezas.
           
            As partes muitas vezes são invisíveis, acaba-se generalizando para um todo. Ainda que esta realidade da globalização e da internet e dos símbolos de consumo universal, um McDonald's ou Starbucks aqui é igual ao de qualquer parte do mundo, busque amortecer diferenças e choques, o estrangeiro levanta as bandeiras do estereótipo na frente de outro tipo de estrangeiro. Somos diferentes, mas isso não é a causa das guerras. Num país estranho, o estrangeiro assume o posto de embaixador de sua própria pátria. A realidade de milhões de indivíduos resumida num pobre coitado. Quando não há entendimento nos idiomas,  o velho truque dos fonemas e imagens reconhecíveis por si só, e lá vão samba, Pelé, Ronaldo e Carnaval a criar conexões.
           
            O homem das cavernas ainda vive em nós. Toda vez que esse homem via ou ouvia algo semelhante a um tigre, já saía correndo, fugia, antes que seu cérebro pudesse processar a informação. Era, e ainda é necessário sobreviver. Agir antes de pensar. No piloto automático, todas as cores do mundo tornam-se 0 ou 1. O problema é viver nesse estado de (des)atenção permanente, mesmo quando o tigre já não mais espreita na entrada da caverna. Neste estágio da evolução já não haveria mais justificativa para o pensar vir depois do agir. Se o pensar vier em algum momento, já podemos contabilizar um lucro. Chegamos à Lua, mas o tigre continua a nos assombrar.
       
        Antes de mais nada, há uma idealização. Acreditar que se pensa por si só, que se é um pensador original e independente, criativo, o tiraria da horda de seres mecanizados, muito cansados para se desviarem da rota, que adotaram mantras e pensamentos saídos de velhos clichês enraizados no dito popular, ou lendas e rituais ancestrais que continuam sendo contados e realizados, mas cuja origem há muito se perdeu. A dança continua, mas não se ouve mais a música. Tem a biologia a preencher o nosso hardware. Tem a linguagem, a fala, o idioma primeiro, heranças do país em que nascemos, dos pais que tivemos, do país em que fomos levados a viver. Tem os hábitos que vêm lá de trás, dos avós dos avós, que vão passando para seus filhos como o bastão de uma corrida de revezamento, mas quem é um pouquinho mais acordado vai, em determinado momento dessa corrida sem vitoriosos, fazer algumas perguntas básicas: o que é este bastão? para quê estou carregando este bastão? por que estou correndo tanto? por que estou passando este bastão para a frente?
       
        A conversa com o Daniel foi na cozinha da casa em que ele morava com a família. Tínhamos todos menos de 20 anos. Era aniversário de seu irmão mais velho. Estávamos sentados na mesa da cozinha. Hoje, em sonhos, eu diria para ele que não há problema. Estamos sempre reproduzindo algo. Só fato de você levantar essa questão, e enxergar que você não é o centro de nada, que você é o mero resultado de milhares de anos de história, já faz de você uma pessoa que enxergou muita coisa.

Thursday, February 11, 2016

Influências 2

Nesta seleção, incluí The Byrds/Stooges; Ramones/Legião Urbana; Martha Reeves/Rolling Stones; No More Auction Block/Bob Dylan; Donna Summer/New Order; Kraftwerk/Franz Ferdinand; Chopin/Serge Gainsbourg/João Gilberto:


 

Influências 1

A inspiração, criatividade, ou seja lá o que for esse ato de criar, passa por diversos canais do pensamento e do não pensamento. Não me refiro aos descaradamente plagiadores. Por isso editei esse vídeo, em que vou intercalando músicas e suas inspirações:



 

Thursday, December 17, 2015

A lembrança encobridora como formação do inconsciente* (um texto para a pós-graduação)



Em "Lembranças Encobridoras" (1899), o processo de análise empregado por Freud em relação a uma recordação de infância de seu paciente assemelha-se ao seu método de análise de sonhos, condensado em "Sobre os Sonhos" (1901). Os dois textos compartilham noções como "formação de compromisso", "conteúdo latente" e "deformação". É possível fazer uma analogia entre recordações infantis e sonhos, uma vez que ambos representariam manifestações disfarçadas de desejos. Da mesma forma que podemos nos dedicar a entender o porquê de acontecimentos aparentemente banais da infância terem ficado retidos na memória (muitas vezes em detrimento de experiências de impacto na biografia pessoal de um indivíduo, como o nascimento de um irmão, morte de um parente, um acidente, uma mudança de residência etc.), há um trabalho de análise a ser empregado para compreender por que motivo acontecimentos insignificantes dos "restos do dia" reaparecem nos sonhos. Como escreve Freud no primeiro texto, "há uma relação direta entre a importância psíquica da experiência e sua retenção na memória".

Para efeitos de síntese, vou chamar o paciente de Freud analisado no texto de Cientista, em referência à sua profissão. Como este trabalho proposto pede a análise da análise, utilizarei uma ordem cronológica dos eventos conforme as conclusões tiradas por Freud e o Cientista ao fim do relato em "Lembranças Encobridoras". Apesar de a lembrança de infância obviamente ter sido o primeiro acontecimento em uma linha do tempo, ela entrará em dois momentos nesta descrição (como ela supostamente ocorreu e como foi rememorada), uma vez que tal recordação se mostrará como o resultado de uma série de processos (assim como também o é um sonho manifesto).

Situação 1 - O cenário: dia, campo, colina e casa ao fundo, onde uma camponesa e uma babá conversam. É a cidade natal do Cientista. Ainda criança, ele está brincando na grama com o primo e a Prima (em caixa alta porque ela é um personagem importante). Cada uma das crianças colhe flores amarelas (dentes de leão). Mas os meninos acham que as flores da menina são mais bonitas, e resolvem roubar seus ramos. Ela chora e sai correndo em direção às duas adultas. Como consolo, a menina ganha pão dessas mulheres. Vendo isso, os dois meninos largam as flores e também correm para elas, em busca de pão.

Por que o Cientista se lembra de acontecimento tão sem importância, sendo que na mesma época ocorreram fatos literalmente marcantes, como um ferimento no rosto que lhe rendeu uma cicatriz? Os passos seguintes nessa construção vêm descritos a seguir.

Situação 2 - O Cientista, pouco tempo depois do imbróglio com os primos, se muda com os pais para a cidade, devido a má situação financeira desses. Seguem-se "anos difíceis e longos". Sente-se incomodado na cidade, e recorda com nostalgia da cidade natal e dos campos.

Situação 3 - Aos 17 anos, o Cientista retorna à sua cidade natal para uma visita de férias e se hospeda na casa de uma família amiga. Impressiona-se com a prosperidade financeira desses, em oposição à conquistada pela sua própria família. Apaixona-se à primeira vista pela filha do casal (que chamarei aqui de Moça Campestre), que na ocasião usa um vestido amarelo, mas não o mesmo amarelo das flores da  Situação 1. Tímido, ele mantém essa paixão arrebatadora em segredo. Durante sua estadia, ele faz longos e solitários passeios pelos campos e cria fantasias. Imagina como teria sido bom se a falência do pai não tivesse acontecido e pudesse ter permanecido no campo. Assim, ele e a Moça Campestre teriam crescido juntos e se apaixonado.

Situação 4 - O Cientista tem 20 anos e nem se lembra mais da Moça Campestre. Faz uma viagem de férias a outra cidade, onde agora moram seus tios e reencontra o primo e a Prima (os mesmos da Situação 1). Essa família também prosperou muito financeiramente. Nessa ocasião, o Cientista estava na universidade e só queria saber de estudar. Não se apaixonou pela Prima. Mas percebeu que seu pai e seu tio arquitetavam secretamente um plano para que ele se casasse com a Prima e morasse onde o tio morava. Pai e tio estavam preocupados com o futuro do Cientista, que, a julgar pelo foco de seus estudos, não se direcionava para uma carreira de estabilidade e facilidades financeiras. O plano secreto foi abandonado quando pai e tio perceberam que o Cientista estava determinado em seguir seu próprio rumo.

Neste momento, certas lembranças de infância do Cientista começam a surgir.

Situação 5 - Anos depois, o Cientista já está formado e passa por dificuldades de colocação no mercado, uma vez que ainda é um novato. Ele começa a reconhecer que seu pai, na Situação 4, foi bem intencionado ao se preocupar com o futuro profissional e financeiro do filho. O casamento arranjado com a Prima lhe pouparia das dificuldades que passava agora e compensaria os anos difíceis da infância/adolescência decorridos da falência do pai. O Cientista precisa batalhar para conquistar o "pão" de cada dia.

Situação 6 - No mesmo período, o Cientista faz uma viagem aos Alpes e vê flores que se parecem com dentes de leão (as flores da Situação 1), cujo amarelo é o mesmo da Moça Campestre.

Situação 7 - A lembrança da Situação 1 começa a emergir. No entanto, a lembrança surge com detalhes e ênfases que intrigam o Cientista. Na sua recordação, o pão comido era extremamente delicioso, de um sabor prazeroso quase alucinatório. O destaque dado ao amarelo das flores também lhe chama a atenção.

A partir daqui, Freud passa a estabelecer pontos de contato entre as situações e busca demonstrar por que motivo essa lembrança ficou retida na memória do Cientista e por que ela surge com essas aparentes distorções. O Cientista, segundo Freud, possuía dois conjuntos de fantasias que representavam "a influência das duas mais poderosas forças motivacionais: a fome o amor".

Em uma dessas fantasias, o Cientista imaginava que sua vida era muito difícil em termos financeiros e que tudo teria sido mais fácil se tivesse ficado no campo. Isso o levou a associar o "pão" pelo qual precisava batalhar diariamente ao "pão" obtido facilmente na infância, no campo. Isso acentuou a lembrança do sabor do pão que comeu quando criança. Teria sido saboroso permanecer no campo,  teria sido mais fácil se ele tivesse optado por uma profissão "pão com manteiga" (mais básica, objetiva, de empregabilidade mais certa), e por isso o pão da lembrança é idealizado e se apresenta tão saboroso. Essa idealização de uma vida mais fácil também retorna quando associa o amarelo das flores que vê nos Alpes (Situação 6, momento em que passa por dificuldades financeiras) à Moça Campestre e ao campo (Situação 3). Mas o Cientista também jogou fora a oportunidade de se casar com a Prima, o que também lhe teria proporcionado uma situação financeira melhor (Situação 4). Convém lembrar que, quando criança, foi o Cientista quem roubou as flores da Prima (Situação 1). Naquele momento ele também jogara fora algo relacionado à Prima. Daí também uma associação com o amarelo das flores. A força motivacional aqui é a fome, na definição proposta por Freud.

A outra fantasia diz respeito à outra força motivacional: amor.

O Cientista jogou fora as flores amarelas da Prima, quando criança. O ato, inicialmente inocente, pode ser interpretado por mentes adultas mais atentas, como uma metáfora de sentido sexual: roubar uma flor de uma moça é uma violência, como deflorar, tirar sua virgindade. O desejo sexual pela Moça Campestre se projetou e retroprojetou para a Prima (que foi simbolicamente deflorada pelo Cientista), uma vez que as duas mantêm a conexão, na mente do Cientista, com o campo. Vários elementos diferentes foram misturados.

Neste ponto, os textos "Lembranças Encobridoras" e "Sobre os Sonhos" também apresentam vários pontos em comum. Em "Sobre os Sonhos", Freud faz a distinção entre "sonho manifesto" (aquilo que o indivíduo efetivamente sonhou) e o "sonho latente" (aquilo que o sonho efetivamente quis dizer: o significado do sonho, que é decodificado via processo de análise). Os conteúdos latentes dos sonhos, em sua visão, são realizações de desejos. Em alguns casos, principalmente nas crianças, tais desejos surgem sem disfarces, enquanto na maioria das pessoas adultas tais desejos passam por um processo de deformação e se apresentam irreconhecíveis, absurdos, ininteligíveis para a mente do estado de vigília. Quando se trata do segundo caso, diz-se que houve o "trabalho do sonho", uma "deformação onírica" que transformou os conteúdos latentes no conteúdo manifesto.

No caso analisado em "Lembranças Encobridoras", vemos que as recordações de infância passam por um processo semelhante ao descrito em relação aos sonhos em "Sobre os Sonhos". Os conteúdos latentes do Cientista eram: 1) que bom seria se eu tivesse permanecido no campo e me casado com a Prima ou Moça Campestre, fazendo assim minha vida mais fácil em termos financeiros e 2) que vontade de ter sido menos tímido e ter tido relações sexuais com a Moça Campestre.

A deformação do latente (aquilo que o Cientista sentia) para o manifesto (aquilo do qual ele se lembra e, tal como um sonho, se transformou numa lembrança modificada) utiliza os seguintes mecanismos: condensação, deslocamento, figurabilidade e elaboração secundária. Farei a seguir, uma brevíssima síntese de tais processos.

Na condensação, o conteúdo manifesto apresenta-se em duração temporal muito menor, reduzida, do que o conteúdo latente. Cada elemento do sonho é sobredeterminado, ou seja, cada elemento do sonho leva a núcleos temáticos que vão se cruzando. No sonho, Fulano pode ser uma mistura do Sicrano A com Sicrano B. No caso do Cientista, "campo" se associou à Prima e à Moça Campestre; o amarelo desempenhou papel de ponte entre infância e presente, assim como o pão a ser batalhado e o pão delicioso do passado.

O deslocamento mostra que acontecimentos aparentemente banais são investidos de enorme energia psíquica. O Cientista pensava em fome e sexo, e investiu de força uma recordação trivial de infância que possuía os elementos necessários para que conexões e associações pudessem ser efetuadas inconscientemente. Como diz Freud em "Sobre os Sonhos", "o material psíquico dos pensamentos oníricos inclui, habitualmente, recordações de vivências marcantes __ não raro da primeira infância". O caso do Cientista mostra que a primeira infância serviu como elemento cristalizador de pensamentos oníricos.

Os dois outros processos, figurabilidade e elaboração secundária, acabam se misturando nesta transposição de conceitos da análise dos sonhos para a análise das lembranças do passado, ou "lembranças encobridoras". O inconsciente, no caso aqui discutido, utilizou imagens visuais já existentes na memória do Cientista para representar suas intenções latentes. Não foram representações surgidas do acaso, ou criadas ao acaso. Associações de cores, palavras e pessoas, além de metáforas substituídas por imagens e deslocamentos de afetos e energias psíquicas em diferentes momentos da vida do Cientista foram forças em atuação.  Para Freud, o passado não é um fato selado: ele se transforma e adquire diferentes interpretações em diferentes momentos da vida de uma pessoa. Já a elaboração secundária fez o "trabalho final" de dar ênfase a certos aspectos dessa lembrança, como o sabor acentuado do pão e o amarelo vivo das flores.

O termo "lembranças encobridoras" já explicita a noção de que certas lembranças escondem algo. Essas lembranças encobridoras realizam tarefa semelhante à  deformação onírica. Em determinados casos, há um desejo inconfessável e que causa grande agonia por parte de um indivíduo. É necessário que tal desejo se mantenha inconsciente, escondido. Uma enorme carga de repressão e energia é desprendida para exercer essa censura. Diz Freud, em "Lembranças Encobridoras", que "há fundamentos mais gerais que têm uma influência decisiva na promoção do deslizamento dos pensamentos e desejos recalcados para lembranças infantis (....) É como se a própria recordação do passado remoto fosse facilitada por algum motivo prazeroso: forsan et haec olim meminisse juvabit (talvez algum dia nos seja agradável recordar estas coisas)".

O Cientista tinha dois desejos recalcados (defloramento e conforto material), e ambos lhe causavam certa vergonha, angústia, e permaneceram inconscientes (até certo ponto). Houve, então, uma "formação de compromisso". O conteúdo recalcado precisou se tornar manifesto, mas sob uma negociação. Foi necessário uma deformação da apresentação dos desejos, para que não assustassem o Cientista, e para que "enganassem" sua censura inconsciente. Tais desejos usaram um disfarce, uma fantasia, para que pudessem se apresentar à consciência, sem causar danos ao Cientista, e para que pudessem ser liberados pela censura.

Para isso, conteúdos tão nitidamente adultos e sexuais buscaram elementos à disposição na memória do Cientista que fossem seu exato oposto, mas que ao mesmo tempo se encaixassem como representações e metáforas dos conteúdos latentes. A infância, e a noção de inocência a ela associada, serviram como corporificações, como representações de tais pensamentos "impuros". O inconsciente pegou o que estava mais próximo e à sua disposição para efetuar seus processos de deslocamento, condensação, figurabilidade e elaboração secundária. As Situações descritas mostram, em ordem cronológicas, como pontes foram sendo criadas entre um pensamento e outro e "coladas", entre uma associação e sua representação/substituição.

Com a deformação e a formação de compromisso, tais desejos que causariam enorme constrangimento ao Cientista em sua vida de vigília (ou consciente), puderam chegar à consciência, de forma disfarçada, sem causar angústia ao próprio e ao mesmo tempo satisfazendo sua censura e sua necessidade de exprimir tais pensamentos.

*Escrito por Bruno Yutaka Saito em 4/7/2015 como avaliação da disciplina Formações do Inconsciente na pós-graduação em Teoria Psicanalítica na PUC-SP

Tuesday, February 15, 2011

Um rei entre nós




Há sempre o filme que vemos na nossa frente, e aquele que criamos na nossa cabeça. Alguns filmes, apenas medianos, crescem enormemente quando imaginamos o que ele poderia ter sido, mas não foi. O Discurso do Rei, favorito ao Oscar deste ano, é um deles. É uma produção digna, com ótimos atores, bons diálogos etc. Sua intenção primordial foi mostrar uma excelente história que pedia para ser contada no cinema. Uma bela Sessão da Tarde, nada mais.

O drama se impõe: como ser rei, como ter a postura de um rei (e a voz de um, literalmente), num momento em que os governantes agora tinham que se expor mais do que nunca?

Por uma dessas coincidências inexplicáveis, um livro me caiu à mão dias depois de ver o filme. É Introdução a uma Verdadeira História do Cinema (ed. Martins Fontes, 1989), na verdade, a transcrição de uma série de palestras ministradas por Godard em 1978 em Montreal.

Nesses encontros, Godard fazia uma espécie de auto análise, terapia, em público. Durante a manhã, eram exibidos um filme seu e trechos de produções de outros cineastas que, de alguma maneira, serviram de referência para o diretor.

Na palestra em que o tema era o filme O Pequeno Soldado (1963), Godard dizia:

"O primeiro plano foi inventado pelo cinema. A história da estrela e do star system, que foi uma derivação do primeiro plano e depois repercutiu na política, já que a televisão é o principal suporte dos atores políticos...E, de resto, todos os políticos agem como atores, e também os atores atuam como pequenos políticos. E ligar essa história ao fascismo, por exemplo, em que Hitler utilizou isso de maneira bastante consciente. Não havia televisão, e ele se serviu imediatamente de sua voz e do rádio e, em seus meetings, de certo tipo de iluminação (....) Acho que as estrelas são muito interessantes, em determinados momentos, porque são uma espécie de fenômenos....como o câncer, uma espécie de proliferação da personalidade bastante simples de um indivíduo, que de repente se torna enorme"

A fruição de uma obra de arte é carregada de aspectos subjetivos. Mas, se inconscientemente, fiquei satisfeito com o resultado de O Discurso do Rei, o fato se deve mais a alguns temas abordados na superfície do que a uma visão condescendente.

O Discurso do Rei nos lembra da evolução do culto à personalidade. Nos primórdios, eram os quadros feitos pelos artistas mais destacados da época, bustos, esculturas, retratos impressos nas moedas. Imagens a lembrar os plebeus de que havia um Deus na Terra supremo a ser seguido, respeitado e venerado.

O filme com Colin Firth apresenta um momento em que essas figuras estáticas ganharam voz. Era um sentido a mais a ser usado na expressão do poder. O rádio chegava. Assim como no cinema. Imagens começaram a ganhar movimento. Mais tarde, ganhavam som, cores.

Os políticos precisam fazer de conta que estão entre nós. Que falam a nossa linguagem. Hoje eles estão nas redes sociais. Mas quem acredita que eles estão no Twitter, Facebook etc. por vontade própria? É apenas mais um instrumento a nos seduzir. Porque precisamos dessa ilusão de que somos representados por eles.

A ideia do filme é que a voz transmite a segurança, e que um rei sem essa voz, não é nada. É indigno da cumplicidade do povo. De certa forma, é como se ele precisasse aprimorar o seu exterior, ser mais um produto de marketing do que um real líder (não entro aqui na questão se ele era ou não). Mas Hitler, Fernando Collor e tantos outros políticos souberam se expressar verbalmente e fisicamente, e chegaram onde chegaram. Coitado do líder gago, do feioso. Coitado daquele que não sabe iludir e vender o seu peixe. Porque política, para alguns, é como cinema.

Monday, February 07, 2011

Vida de cinema





Christian Bale é o atual Batman, já foi o Psicopata Americano, embarcou no Exterminador do Futuro, já foi Operário, Sobrevivente, mas não importa. Sempre que vejo um filme com ele, acabo vendo aquele garotinho chato e mimado de "O Império do Sol" que, depois de tanto levar na cabeça, adquire uma incrível maturidade e braveza.

Talvez porque ali, naqueles olhos tristes, já estava a marca do grande ator que viria a se tornar, hoje favorito a levar o Oscar de coadjuvante por "O Vencedor". Talvez porque eu tenha visto o filme ainda criança, quase com a mesma idade dele na época. E porque desde aquele momento, Bale só iria fazer papéis esquisitos, desafiadores (claro, com alguns desvios de percurso aqui e ali). Mas quem é Bruce Wayne senão uma versão milionária do garotinho desgarrado dos pais de "Império do Sol"?

Bale comete exageros. Sua interpretação em "O Vencedor" é repleta daqueles contorcionismos que a Academia gosta. É na linha Robert De Niro de ser. Metamorfose física numa atuação expressionista. O personagem, Dicky Eklund,um ex-boxeador viciado em crack, pedia.

Mas ainda assim em Dicky, lá está Bale. O melancólico ator que se mistura ao triste personagem, sempre rodeado de "amigos" e familiares, ao mesmo tempo tão solitário e tão intenso que às vezes parece não dar conta de si.

Na mesma trilha, em caminho oposto, está Natalie Portman. Também começou no cinema criança, com a mesma idade de Bale, 13 anos. É a grande favorita ao Oscar.


"Cisne Negro" lida com certa imagem pública de Natalie. É a garota-prodígio, bela, que não comete deslizes. Perfeita nas atuações, moça bem-educada. Às vezes até chata de tão bem comportada.

Com os rostos conhecidos é assim. Dependendo da nossa idade e da idade dos atores, levamos uma vida paralela. Enquanto entramos na faculdade, lá estão eles fazendo um importante papel de adolescente no cinema. Quando conseguimos o primeiro emprego, lá estão ele sendo indicados pela primeira vez ao Oscar. Quando nos casamos, lá estão eles nas revistas de celebridades dando vexames e sendo flagrados bêbados.

Acompanhar a carreira de atores como Bale e Natalie, no cinema e fora dele, é uma espécie de reality show. E é aí que o cinema, e a competência do ator, se mostram poderosos. Porque, quando vemos um filme, não podemos ver o ator. Não podemos ver "ah, lá está Christian Bale interpretando fulano". Para um filme ser crível, é necessário abstrairmos, e vermos primeiro o personagem e, depois, o ator.

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A família é o que move "Cisne Negro" e "O Vencedor". Por isso, mais interessante do que as cenas de treinos, é quando vemos Natalie e Bale em família. O relacionamento quase fantasmagórico de Natalie com a mãe, apesar de repetir elementos de filmes de terror, mais claramente "Carrie, a Estranha", repressão sexual etc. etc., é um dos mais bem resolvidos do filme.

Mas prefiro o "expressionismo realista" de "O Vencedor" ao expressionismo de butique do "Cisne Negro". Darren Aronofsky é daqueles cineastas que levanta muita poeira, adora chocar o espectador para deixar uma marca constante. Mas as dores que ele causa incomodam na hora. Após um tempo, sobra pouca coisa. Não por acaso, seu filme mais memorável, cuja dor permanece latente, é o seu mais realista, "O Lutador".

E o grande achado de "O Vencedor" são as irmãs e a mãe de Bale. Funcionam como um ente único, uma criatura só de várias pernas, braços e cabeças. Lembram aqueles desenhos animados tipo Smurfs, e, principalmente, aquela gang de mafiosos da Corrida Maluca. Pior é saber que criaturas assim funcionam na vida real, caricaturas ambulantes.

Em certo momento, a estética "tosca" de "O Vencedor" estava começando a me incomodar, mas quando o personagem de Bale assiste ao documentário sobre sua vida, tudo começa a fazer sentido. É a realidade-ficção dentro de um filme baseado em fatos reais. A simulação da verdade é a chave para se entender o cinema contemporâneo.

Sunday, January 30, 2011

Beleza sofrida



Seu amor te deixou? Perdeu o emprego? O médico deu uma notícia ruim? Seja qual for a desgraça, de tempos em tempos somos forçados a atuar como personagens de uma trama indesejada. Em momentos assim, o pensamento fica martelando, reverberando a má nova. Costumo relaxar um pouco quando entro numa sala de cinema, para entrar em outro mundo.

Muito tempo atrás um conhecido me recomendou a leitura de "Cartas Portuguesas", de Mariana Alcoforado, um dos "exemplos mais ardentes de amor desesperado da literatura internacional". Era para eu parar de sofrer um pouco por ter levado um fora de uma namorada e entender o que era o verdadeiro sofrimento. Para colocar meu martírio em perspectiva.

De forma um tanto inconsciente, fui ver "Biutiful" e "Um Lugar Qualquer", filmes que abordam formas bem distintas de encarar as dores do mundo.

Grosso modo, há quem divida os sofrimentos em dois modos. A forma burguesa e a forma proletária. O filme de Sofia Coppola representaria a primeira; o de Iñárritu, a segunda.

Nesse raciocínio estreito, limitado, diríamos que o sofrimento burguês é "coisa de gente que nunca lavou roupa no tanque". Coisa de gente mimada, que está reclamando de barriga cheia. E que o sofrimento proletário é o autêntico, justificável, aquele que realmente merece ser expresso e ouvido.

Assistindo a "Biutiful", vemos não uma ou duas, mas uma avalanche de desgraças a se abater sobre nosso herói, Javier Bardem. Ele tem câncer, apenas dois meses de vida, duas crianças pequenas para criar, nenhum tostão, vive às turras com a mulher bipolar, sobrevive de trambiques envolvendo chineses e africanos ilegais.

Desde "Amores Brutos" Iñárritu vem expondo as mazelas que recaem sobre os menos favorecidos, o destino que cai sobre nós de forma implacável. Mas tento entender o que sobra além da denúncia, do tratamento de choque. De forma bem explícita, "Biutiful" nos mostra o lado dos excluídos, que nem tudo é uma maravilha (desta vez, em Barcelona). Ao abordar o que há por trás da pirataria, por exemplo, parece propaganda institucional, aquelas que vêm antes dos filmes em DVDs originais e nos cinemas.

Na overdose de desgraças, "Biutiful" nos anestesia. O realismo exacerbado se torna tão insuportável que tudo se encaminha para o surreal; e o efeito é anulado.

Talvez um pouco como na vida, como quem busca atalhos (drogas, entrega obsessiva no trabalho etc.) para escapar da realidade difícil.

Não são poucos, no entanto, aqueles que têm acusado Sofia Coppola de ter feito um filme vazio, superficial. "Um Lugar Qualquer" seria apenas um lamento de uma pessoa bem nascida.



Vejo no minimalismo de "Um Lugar Qualquer" uma força que extrapola classes sociais.

Acompanhamos o tempo todo o personagem de Stephen Dorff. Sofia o filma apenas de fora, não entra na sua psicologia. Talvez porque Dorff, o personagem, seja vazio, não tenha realmente nada por dentro. Ou melhor, talvez ele tenha anulado o resto de humanidade que possuía antes de embarcar no universo dos bem de vida, dos milionários. Está sempre num estado adormecido, entorpecido, enrolado na cama.

O que ele tem para ensinar à filha? Ele é bom no quê? Até no Guitar Hero, parece não ser grandes coisas. É um herói de ação, às voltas com carros de luxo, helicópteros e mulheres, mas ele não age. É um herói de ação entalado numa vida/roteiro sem ação.

Observar a desação de "Um Lugar Qualquer" é um convite para olhar a si mesmo. Talvez daí o desconforto de alguns espectadores.

Não por acaso, a referência aos vampiros de "Crepúsculo". Dorff é uma espécie de vampiro que, ao ser mordido pela fama, deixou de viver. Não parei de pensar em pessoas como Marilyn Monroe ou Michael Jackson, ou mesmo Kurt Cobain. Celebridades que tiveram um começo de carreira sofrido e que, de alguma maneira, nunca conseguiram superar traumas do passado. Que, de certa forma, acabaram procurando o próprio fim precoce.

Existe um tipo de sofrimento mais "nobre" do que o outro? Na hora da dor, quanto mais por dentro da própria dor você estiver, não é possível pensar muito, e todos se igualam. Olhar de fora e criticar é fácil, como se você estivesse usando uma armadura protetora.