Tuesday, February 15, 2011

Um rei entre nós




Há sempre o filme que vemos na nossa frente, e aquele que criamos na nossa cabeça. Alguns filmes, apenas medianos, crescem enormemente quando imaginamos o que ele poderia ter sido, mas não foi. O Discurso do Rei, favorito ao Oscar deste ano, é um deles. É uma produção digna, com ótimos atores, bons diálogos etc. Sua intenção primordial foi mostrar uma excelente história que pedia para ser contada no cinema. Uma bela Sessão da Tarde, nada mais.

O drama se impõe: como ser rei, como ter a postura de um rei (e a voz de um, literalmente), num momento em que os governantes agora tinham que se expor mais do que nunca?

Por uma dessas coincidências inexplicáveis, um livro me caiu à mão dias depois de ver o filme. É Introdução a uma Verdadeira História do Cinema (ed. Martins Fontes, 1989), na verdade, a transcrição de uma série de palestras ministradas por Godard em 1978 em Montreal.

Nesses encontros, Godard fazia uma espécie de auto análise, terapia, em público. Durante a manhã, eram exibidos um filme seu e trechos de produções de outros cineastas que, de alguma maneira, serviram de referência para o diretor.

Na palestra em que o tema era o filme O Pequeno Soldado (1963), Godard dizia:

"O primeiro plano foi inventado pelo cinema. A história da estrela e do star system, que foi uma derivação do primeiro plano e depois repercutiu na política, já que a televisão é o principal suporte dos atores políticos...E, de resto, todos os políticos agem como atores, e também os atores atuam como pequenos políticos. E ligar essa história ao fascismo, por exemplo, em que Hitler utilizou isso de maneira bastante consciente. Não havia televisão, e ele se serviu imediatamente de sua voz e do rádio e, em seus meetings, de certo tipo de iluminação (....) Acho que as estrelas são muito interessantes, em determinados momentos, porque são uma espécie de fenômenos....como o câncer, uma espécie de proliferação da personalidade bastante simples de um indivíduo, que de repente se torna enorme"

A fruição de uma obra de arte é carregada de aspectos subjetivos. Mas, se inconscientemente, fiquei satisfeito com o resultado de O Discurso do Rei, o fato se deve mais a alguns temas abordados na superfície do que a uma visão condescendente.

O Discurso do Rei nos lembra da evolução do culto à personalidade. Nos primórdios, eram os quadros feitos pelos artistas mais destacados da época, bustos, esculturas, retratos impressos nas moedas. Imagens a lembrar os plebeus de que havia um Deus na Terra supremo a ser seguido, respeitado e venerado.

O filme com Colin Firth apresenta um momento em que essas figuras estáticas ganharam voz. Era um sentido a mais a ser usado na expressão do poder. O rádio chegava. Assim como no cinema. Imagens começaram a ganhar movimento. Mais tarde, ganhavam som, cores.

Os políticos precisam fazer de conta que estão entre nós. Que falam a nossa linguagem. Hoje eles estão nas redes sociais. Mas quem acredita que eles estão no Twitter, Facebook etc. por vontade própria? É apenas mais um instrumento a nos seduzir. Porque precisamos dessa ilusão de que somos representados por eles.

A ideia do filme é que a voz transmite a segurança, e que um rei sem essa voz, não é nada. É indigno da cumplicidade do povo. De certa forma, é como se ele precisasse aprimorar o seu exterior, ser mais um produto de marketing do que um real líder (não entro aqui na questão se ele era ou não). Mas Hitler, Fernando Collor e tantos outros políticos souberam se expressar verbalmente e fisicamente, e chegaram onde chegaram. Coitado do líder gago, do feioso. Coitado daquele que não sabe iludir e vender o seu peixe. Porque política, para alguns, é como cinema.

Monday, February 07, 2011

Vida de cinema





Christian Bale é o atual Batman, já foi o Psicopata Americano, embarcou no Exterminador do Futuro, já foi Operário, Sobrevivente, mas não importa. Sempre que vejo um filme com ele, acabo vendo aquele garotinho chato e mimado de "O Império do Sol" que, depois de tanto levar na cabeça, adquire uma incrível maturidade e braveza.

Talvez porque ali, naqueles olhos tristes, já estava a marca do grande ator que viria a se tornar, hoje favorito a levar o Oscar de coadjuvante por "O Vencedor". Talvez porque eu tenha visto o filme ainda criança, quase com a mesma idade dele na época. E porque desde aquele momento, Bale só iria fazer papéis esquisitos, desafiadores (claro, com alguns desvios de percurso aqui e ali). Mas quem é Bruce Wayne senão uma versão milionária do garotinho desgarrado dos pais de "Império do Sol"?

Bale comete exageros. Sua interpretação em "O Vencedor" é repleta daqueles contorcionismos que a Academia gosta. É na linha Robert De Niro de ser. Metamorfose física numa atuação expressionista. O personagem, Dicky Eklund,um ex-boxeador viciado em crack, pedia.

Mas ainda assim em Dicky, lá está Bale. O melancólico ator que se mistura ao triste personagem, sempre rodeado de "amigos" e familiares, ao mesmo tempo tão solitário e tão intenso que às vezes parece não dar conta de si.

Na mesma trilha, em caminho oposto, está Natalie Portman. Também começou no cinema criança, com a mesma idade de Bale, 13 anos. É a grande favorita ao Oscar.


"Cisne Negro" lida com certa imagem pública de Natalie. É a garota-prodígio, bela, que não comete deslizes. Perfeita nas atuações, moça bem-educada. Às vezes até chata de tão bem comportada.

Com os rostos conhecidos é assim. Dependendo da nossa idade e da idade dos atores, levamos uma vida paralela. Enquanto entramos na faculdade, lá estão eles fazendo um importante papel de adolescente no cinema. Quando conseguimos o primeiro emprego, lá estão ele sendo indicados pela primeira vez ao Oscar. Quando nos casamos, lá estão eles nas revistas de celebridades dando vexames e sendo flagrados bêbados.

Acompanhar a carreira de atores como Bale e Natalie, no cinema e fora dele, é uma espécie de reality show. E é aí que o cinema, e a competência do ator, se mostram poderosos. Porque, quando vemos um filme, não podemos ver o ator. Não podemos ver "ah, lá está Christian Bale interpretando fulano". Para um filme ser crível, é necessário abstrairmos, e vermos primeiro o personagem e, depois, o ator.

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A família é o que move "Cisne Negro" e "O Vencedor". Por isso, mais interessante do que as cenas de treinos, é quando vemos Natalie e Bale em família. O relacionamento quase fantasmagórico de Natalie com a mãe, apesar de repetir elementos de filmes de terror, mais claramente "Carrie, a Estranha", repressão sexual etc. etc., é um dos mais bem resolvidos do filme.

Mas prefiro o "expressionismo realista" de "O Vencedor" ao expressionismo de butique do "Cisne Negro". Darren Aronofsky é daqueles cineastas que levanta muita poeira, adora chocar o espectador para deixar uma marca constante. Mas as dores que ele causa incomodam na hora. Após um tempo, sobra pouca coisa. Não por acaso, seu filme mais memorável, cuja dor permanece latente, é o seu mais realista, "O Lutador".

E o grande achado de "O Vencedor" são as irmãs e a mãe de Bale. Funcionam como um ente único, uma criatura só de várias pernas, braços e cabeças. Lembram aqueles desenhos animados tipo Smurfs, e, principalmente, aquela gang de mafiosos da Corrida Maluca. Pior é saber que criaturas assim funcionam na vida real, caricaturas ambulantes.

Em certo momento, a estética "tosca" de "O Vencedor" estava começando a me incomodar, mas quando o personagem de Bale assiste ao documentário sobre sua vida, tudo começa a fazer sentido. É a realidade-ficção dentro de um filme baseado em fatos reais. A simulação da verdade é a chave para se entender o cinema contemporâneo.