Tuesday, October 31, 2006

Gloria


Entrevistei Patti Smith no último sábado, dia 28 de outubro, no Rio, para a Folha (http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u65593.shtml). Como no jornal não cabe tudo, vou colocar a entrevista inteira aqui. Vou tirando a fita aos poucos, e postando, para não perder o embalo. Mais tarde, também, as impressões. Ver Patti, comprida, magra, longos cabelos brancos, de chapéu, gravata, blazer, tipo Diane Keaton em Annie Hall, dobrar o corredor, e vir andando em minha direção, e sorrir para mim e estender a mão e perguntar como eu estava, são daquelas experiências que....precisam de mais espaço para se falar....Bem, aqui vai, aos poucos, a entrevista com a Patti Smith:

(foto do Alexandre Schneider, do UOL)

Você poderia falar sobre as suas primeiras impressões do Brasil, e não apenas coisas relacionadas às pessoas, à praia etc?

Bem, estou aqui só há um dia e meio. Minhas primeiras impressões, é claro, são saindo de carro do aeroporto, e achei tudo muito diverso e interessante em termos de arquitetura. As partes que parecem ser mais pobres continuam interessantes, e têm uma estética específica que achei interessante e atrativa. As pessoas têm sido muito fervorosas e.... bem, estou aqui há um tempo muito curto, mas todos têm sido solícitos, respeitosos e brincalhões. As pessoas parecem ter um bom senso de humor, o que é importante, e gosto da comida, porque gosto de peixe frito e muita salada (é como eu gosto de comer), então é fácil para mim comer, e sentar na praia e comer bacalhau, e conversar com as pessoas, rir com as crianças e escutar as pessoas falando sobre as eleições, o que achei interessante porque parece que não importa para onde você vá, todos estão encarando os mesmos problemas, que é a corrupção, e ter um acordo com a corrupção, ter um acordo com a mídia também é ser corrupto. Então, temos muitos dos mesmos problemas, e a diferença entre os ricos e os pobres é uma grande disparidade. A América tem muitos dos mesmos problemas. Eu não diria que estou comparando países, porque não sei muito sobre seu país, mas nós sofremos das mesmas coisas, a destruição do nosso meio-ambiente, os ricos ficando mais ricos, o governo sendo corrupto, e acho que em qualquer lugar que eu vou, as pessoas parecem estar sofrendo esses mesmos desafios. Outra coisa que observei é a beleza da região rural, Vi só um pouco dela e me faz querer voltar. Quando eu voltar, e passar mais tempo no Brasil, então poderei te dar uma resposta mais inteligente.

Você tem algum conselho para dar aos brasileiros? Amanhã vamos escolher nosso novo presidente...

Apenas diria às pessoas para seguirem seu coração e votar. É algo muito difícil, porque no meu país, nós temos nos mostrado muito pouco nas eleições. Apenas metade das pessoas votam, o que é deplorável, e as melhores pessoas nunca vencem. Os melhores partidos independentes têm passado por um período muito difícil para se tornar mais fortes porque somos dominados por um sistema de dois partidos. Então, uma pessoa realmente honesta e inteligente como Ralph Nader não tem conseguido se tornar presidente. E se ele fosse presidente, o mundo inteiro seria mais feliz, acredite em mim. Então, se eu fosse dar algum conselho, eu diria: “Não faça como a América faz, não fique sentado na sua casa. Saia e vote, porque um voto realmente é importante. Cada único voto é importante. Se você tem duas pessoas concorrendo, e uma delas tem mais chances de servir melhor ao povo, vote nele. Porque alguém vai governar. E os governos, em todos os lugares ao redor do mundo, tem se esquecido de seu dever. Os governos estão lá, na verdade, para servir ao povo. Não é o povo que serve ao governo. O governo serve ao povo, mas em algum momento no decorrer da história, em todo o planeta, o governo se esqueceu disso. É como nas igrejas, ou no Vaticano, ou qualquer coisa. O porquê de eles estarem lá é para servirem ao povo. Eles não estão lá para dominar o povo. Eles estão lá para servir às pessoas. Seja para ajudá-las, ou para ajudá-las a se organizar, para oferece-las um lugar para culto, um lugar para exercitar suas visões políticas. O governo e a igreja servem ao povo.

(continua...)

Friday, October 20, 2006

Vou tocar


Um final de semana, duas coisas

Gheirart manda avisar:


Preparados para a 6ª edição do famoso 10:15 Saturday Night?

G-há e Serge tocando novidades e popices descompromissadas
+ Bruno Saito (Ilustrada) e Plínio César (Espaço Retrô) fazendo coro à nossa temática.

Intervenções com o Dietrouxas Projekt (projeto com releituras de Marlene Dietrich) + Brazilian Cure (minha banda cover do Cure da década de 90). Tudo acústico e rápido, claro!

As imagens ficam por conta de Alexandre Bispo.

Como a festa já virou balada, não se sinta intimidado. Você pode reservar uma mesa, passar antes de ir para algum lugar, reencontrar os amigos, levar sua mãe, beber um drink no balcão, dançar Suede na pistinha improvisada etc. Enfim, ser o q você realmente é! Rs

Augusta, 2052 - em frente ao cinesec • tel.: 3062-4429 • R$ 3
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=7255796


e Rodrigo também manda avisar:


As cantoras Lulina e Karine Alexandrino e a banda Seychelles dividem o palco do Coppola neste domingo (22). O show faz parte do Projeto 2em1, organizado pela casa.A neo-tropicalista Karine mostra hits do segundo disco, o CD Querem Acabar Comigo, Roberto.

A recifense Lulina se prepara para lançar o primeiro disco, portanto antecipa algumas melodias deste material.O Seychelles remonta o rock feito na Inglaterra nos 70, misturado à vanguarda paulistana do começo dos anos 80 e o psicodelismo de Mutantes e Secos & Molhados. Apesar das referências do passado, a banda busca "reinventar" o rock, misturando música eletrônica e jazz. (GUIA MAIS - SHOWLIVRE)

Local: Coppola (R Girassol, 323, Vila Madalena, São Paulo-SP)Hor: 19h. Os shows começam 20h!Ing: 25,00DJs: MARCELO COSTA e BRUNO SAITO

MANDE NOMES PRA LISTA!!! show@2emum.com.br e pague R$ 12,50 por 3 shows!! heheheEsta mensagem foi enviada por Rodrigo De Araujo.
Para ver o perfil de Rodrigo, clique em:http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=4233995506153258768

Thursday, October 19, 2006

O kitsch e o noir



Não é muito difícil entender por que "Dália Negra" divide opiniões. Para começar, não é um entretenimento leve, daqueles para se assistir despreocupadamente entre uma pipoca e outra ao lado da namorada. Afinal, acompanhar as imagens de uma mulher que é cortada ao meio e, quase pior, a narração de um legista que conta como certos órgãos internos da vítima foram removidos, não é algo muito agradável para quem não é fã de programas policiais do mundo cão da TV _além de a digestão da pipoca pedir temas mais amenos.

Mais do que isso, "Dália Negra" incomoda porque coloca a cabeça para pensar (e não se trata de filme de "arte", "francês", "cabeça" ou "da Mostra"). Quem procura história (e quem acha que um filme bom necessita de historinhas) vai logo reclamar que o longa de Brian de Palma é enrolado demais, tem muitos personagens, não dá para entender direito quem faz o quê, quem é o culpado do quê.

O que não deixa de ser verdade. Certos personagens coadjuvantes vão aparecendo do nada, somem fisicamente em determinado momento e somem, principalmente, na memória do espectador, quando uma profusão de nomes volta e meia é pronunciada. Estamos todo o tempo às voltas com pistas falsas. Pode até parecer que é até mais um filminho qualquer sobre a investigação de um assassinato.

"Dália Negra" requer ainda uma certa dose de humor _e, para entender qualquer tipo de humor, é necessário, novamente, pensar. Ainda mais porque o humor de "Dália", filme extremamente sombrio, é sutil, quase imperceptível, ambíguo, enfim, são várias piadas internas, que não buscam a gargalhada.

Quem não enxerga o humor de "Dália Negra" provavelmente acha que clichês são um pecado mortal, e que usá-los aos montes em um filme o torna ruim. Filmes ótimos podem ser repletos de clichês, da mesma forma que um amontoado de clichês não tornam necessariamente um filme bom. Não se trata da quantidade, mas sim da maneira com que são usados.

Assim, De Palma une o clichê e o humor, numa espécie de sátira/homenagem a Hollywood. E esta indústria, seja a da era clássica, seja a dos dias atuais, é indissociável da idéia de clichê _um molde para reproduções infinitas, feitas ao gosto do espectador, para não correr riscos de flop nas bilheterias.

Costuma-se dizer que "Dália Negra" é um filme frio. Sim, ele é deliciosamente frio e calculista, como as piores "femme fatales". Ou então costuma-se dizer que acontecem coisas demais na parte final, que há um excesso de revelações, como se De Palma tivesse desleixado na montagem. Novamente, há, sim, uma certa ironia nisso tudo, e não há como não pensar em certas situações e personagens maneiristas que David Lynch insere em seus filmes _a série "Twin Peaks" é repleta delas_ ou nas conclusões dos antigos desenhos do Scooby-Doo, quando os mocinhos retiravam a máscara do vilão.

Sátira que fica evidente quando um dos personagem faz uma observação em relação à arte moderna, reprovando-a, já que o quadro em questão não representa a beleza clássica, mas sim as deformações da alma. O cinema moderno de De Palma relê o filme noir e seu imaginário, numa estrutura que de certa maneira caminha para o kitsch, e encontra um saudável ponto de conexão com o cinema psicológico de David Lynch.

Tudo em "Dália Negra" tem a ver com a irrealidade das ações, das falas, das verdades e mentiras da imagem. A cena inicial, de conflitos nas ruas, por exemplo, não faz questão nenhuma de fingir-se realista. São claramente atores em ação num estúdio. Veremos a Dália viva apenas na projeção de um filme vagabundo usado nas investigações de seu assassinato _ela não é um ser concreto.

Ou então o recurso da voz "off", necessária ao noir _Pensamentos e ações de Bucky narram o que veremos à frente, ou o que deveríamos ver_ e as "femme fatales", devidamente envoltas em nuvens de cigarros, que surgem conforme manda o clichê (uma delas é bissexual, a outra foi marcada em ferro). São mulheres malvadas, donas de falas geniais ("Me esforcei muito para ser uma vadia", ou algo do tipo, diz a personagem de Hillary Swank em determinada altura, "mas ela [a Dália Negra] tinha um talento natural para isso").

Não há verdade nas imagens, ou melhor, não há uma única verdade, e quem já reclamava que "Femme Fatale", seu filme anterior, era ruim porque tudo no final era "só" um sonho, vai reclamar novamente, já que De Palma retomou ao seu tema básico.

"Dália Negra" volta assim ao universo de tintas B de "Vestida para Matar" (e suas soluções psicológicas e a referência a "Psicose"), "Dublê de Corpo" (a imersão no universo pornô, a referência a "Janela Indiscreta" e a loira puta e fatal) e "Um Tiro na Noite" (novamente a puta, o imaginário invadindo o real e a referência a "Depois Daquele Beijo"). Assim como personagens desses longas anteriores, Dwight irá se sentir terrivelmente atraído pelo perigo e pelo mórbido, já que irá transar com a "femme fatale" Swank, espécie de duplo da moça assassinada e retalhada. A diferença é que, agora, trata-se de um cineasta com pleno domínio dos seus recursos. Com este filme, fica ao lado de cineastas que estão no auge, como Lynch e Almodóvar.
E, como eles, mantém um pé nada reprimido no "mau gosto" de seu passado, e encarna outro estereótipo, o do velho safado que perde de vez seus pudores.

Originalmente escrito para http://ilustradanocinema.folha.blog.uol.com.br/

Wednesday, October 04, 2006

Ano passado em

Quando você me procurou, eu já não mais existia. Não consegui te escrever, não consegui te procurar, a velha história da vó contada ao pé do ouvido....mas ando tão ocupado, você sabe, essa vida corrida que não dá tempo nem para respirar. Mas quando você me procura, eu me lembro de como fomos, de coisas que a gente falava à noite, de viagens que a gente faria. Nossa história não existiu, ela vai existir ainda. As historinhas mais secretas de criança, daquelas que a gente só lembra quando a gente conta, os planos futuros e os empregos que nunca tivemos mas sempre planejamos, e a virada na vida que sempre surgia na virada do ano. E cada pedacinho de lembrança, e cada frase que ainda fica por aqui, e cada lembrança de rosto seu, e cada expressão minha que eu fiz para você e nunca vi, mas que me recordo tão bem. Será que vamos conseguir apertar a mão bem forte para ficarmos juntos, e não irmos embora, e não nos perdermos e não sermos arrastados ? E o que nos arrasta? E se esse tempo todo longe for apenas um lapso, e de fato nem um dia tiver se passado ? Estou do seu lado, e se as palavras omissas não chegam até você, tudo é uma questão de tempo. Aquele que você procura sempre retorna.

Sunday, June 04, 2006

Roupas para a festa

Quando se sentia só, vestia sua melhor roupa de sair. E esperava. Quando se sentia extremamente só, vestia sua melhor roupa de sair e caprichava na maquiagem. E nada passava. Quando a solidão deixava de ser uma sensação incômoda para se tornar sua verdadeira e única roupa, um espelho de corpo inteiro não bastava. Poderia até ir ao cabeleireiro, se naquelas horas eles existissem, cortar os cabelos bem curtos quando as longas madeixas se tornassem grandes empecilhos à sua vida, mas as novas roupas nunca lhe cairiam bem. Tinha apenas a sensação. E passaria longos minutos olhando pela janela, à procura de alguém que ela nem reconheceria mais se um dia encontrasse. O ato era reflexo, automático, após aqueles dias em que procurava por ele e não o encontrava em nenhuma hora do dia, da noite, em nenhuma rua que seu campo de visão lhe permitisse enxergar. Mas ela nunca estava sozinha de fato, o quarto até que era grande para ela, e as caixas espalhadas pelo chão eram profundas. E lá de dentro encontrava cartas e relia as cartas nunca enviadas, e as misturava com as cartas devolvidas, no meio das cartas que ele lhe escrevera, e as letras se fundiam, e as datas se apagavam, e as tintas de diferentes canetas, de diferentes cores, de diferentes tempos (tempos mais felizes?), se cruzavam e se borravam, ilegíveis a cada novo surto de depressão compartilhada que ela encenava na quitinete, e as cartas inventadas iam descrevendo fatos que nunca aconteceram de fato, coisas que poderiam ter sido, e nunca foram porque nunca tiveram espaço para realmente acontecer, e você pode dizer que foi ela quem nunca quis de fato que acontecessem, e você pode talvez acreditar que foi ele quem nunca a entendeu de fato, e ela pode achar que eles nunca tiveram uma conversa de verdade, mas o que acontece é que naqueles momentos em que ela se permitia um surto de solidão e deixar de lado as criancinhas famintas no sinal pedindo dez centavos e os homens caídos na rua pedindo pelamordedeus uma ajudinha, ela colocava sua melhor roupa de sair e caprichava na maquiagem e até tentava fazer um rápido corte improvisado no cabelo se retorcendo na frente do espelho para conseguir acertar a tesoura. Reunia todas as promessas e acusações de todas as cartas entulhadas naquela caixa profunda, daquele quarto nem tão grande assim e imaginava que estava indo para uma festa. Não havia telefone para tocar naquele quarto, e há muito tempo ela não saía, e sua caixa postal era um mistério, mas tem vezes em que as roupas de sair pedem sua presença, e as roupas de sair não podem ficar muito tempo trancadas no armário, então ela se prepara para a festa de sua vida, mesmo que não haja festa nenhuma lá do outro lado da porta, naquelas ruas em que ele nunca mais estará, porque afinal a vontade de celebrar é grande, e os motivos são detalhes pequenos de nós dois, isso no velhos tempos, e agora não sou mais dois, eu sou mais um, como nem me lembrava mais, porque a vontade de me tornar um zero é sempre uma tentação a atormentar.

Tuesday, May 30, 2006

O jardim das geladeiras




Costumávamos nos desencontrar constantemente. Era só eu colocar o pé numa festa para não vê-la. Ela saiu agorinha pouco, me diziam, agorinha mesmo, e ela tava te procurando. Outras vezes, quando finalmente nos esbarrávamos pelas linhas telefônicas (e devo dizer que a ligação, abafada e cheia de chiados, volta e meia caía), combinávamos um longo café. Para finalmente colocar a conversa em dia. Ou melhor, para finalmente iniciar uma conversa. Mas apenas combinávamos e fazíamos planos. Não tomava café há anos. Recomendações do meu analista.

Todos nós somos crianças ainda. E essa era a minha brincadeira. Eu não sabia quem era ela. Nunca a deixava se descrever para mim. E você, como você é? Com quem você se parece?, ela não se cansava de perguntar. Às vezes, eu dava uma descrição qualquer. Estatura mediana, óculos e meio moreno, como o moço da propaganda da revista que eu folheava. O mais vago possível. Que diferença isso faz, eu dizia. Sou quem você quiser, não é assim com os outros, moldes ambulantes? Olha só que bela maneira de conhecer alguém. Você vai lá, aborda um estranho e diz: É você? A reposta não importa. Se for sim, o café estará nos esperando. Se for um estranho mais estranho do que eu, o café estará esperando por vocês. Sua vontade de amar vem antes de mim.

Éramos um casal. Namorados? Preferia dizer que éramos dois. Dois mais dois é cinco. As coisas iam entre nós. Éramos remetentes, nunca destinatários. Ela me ensinou a contar. E sempre havia um que incomodava. Um número a mais. Um número a menos. Nunca entendi matemática. Mas lembro que havia algo ausente que sempre torturava. E o elemento a mais que desestruturava. A exceção que desbanca as regras. Ela esboçava minha imagem, e moldava a nossa história.

Testávamos a resistência dos fios de telefone, das lições da matemática. Mas o que mudou nossas vidas mesmo foi o calor dos corpos. Os corpos que envelhecem. Aquele tempo que tanto dávamos as costas. Física, química, biologia, tudo no mesmo saco. Nada de filhos, carro, comida no prato e uma casa linda para nos abrigar. Apenas outras regras. As rugas que disfarçam os amantes. Os cabelos brancos que camuflam e cegam nossos olhos. E o tempo que apagava a memória. E não sabíamos que eram regras.

Até ficarmos mudos e percebemos que não havia mais linhas, apenas ondas eletromagnéticas. Ondas de rádio, radiação. E nossa história teria agora que se propagar pelo ar, sem nenhum contorno definido. Nosso amor se perdia sem os seguros fios para nos sustentar. O tempo era outro.

A máquina de escrever travava. Não havia mais cartas nem ligações. Numa última tentativa, pensamos com muita força para ver se o pensamento viajava pelo espaço. Foi aí que nos vimos pela primeira vez.

Figura borrada no meio da multidão, ela olhava como os míopes sem óculos. Mais do que os olhos, ela forçava seu coração. Exprimia-o com força para ver se ele bateria com um pouco mais de vigor. Tantos anos vivendo separadamente juntos me davam a certeza de que era ela. E no primeiro contato, tantos desencontros forçados vieram cobrar sua dívida. Vivíamos em outro tempo.

Prometi a ela que a partir daquele dia eu leria as bulas. Tudo tem que estar na temperatura certa. A partir daquele dia eu comecei a guardar a margarina na geladeira. Tudo derrete. Eu não queria ver minha manteiga derretida. E ela aprendeu a regular a temperatura. Não ia mais mastigar blocos de gelo. Ficava resfriada.

Mas não conversamos. Apenas nos vimos, e nos falamos agora por telepatia. Sempre há algo que nos separa. Eu vivo em outro tempo. Acho que 1 segundo nos separa. Talvez ela viva 1 segundo no futuro, as mulheres são mais fortes e espertas, você nunca ouviu falar isso no jardim de infância? E você nunca reparou que no jardim da velhice as velhinhas velam seus homens? Te amarei porque sempre há algo que vai continuar fazendo falta, ela mentaliza. E eu capturo suas ondas.

Tuesday, March 28, 2006

Pássaros no quintal


Ela começou a me contar a história de um passarinho que um dia tinha caído lá no quintal de sua casa. Ele se debatia e mexia as asas, mas não conseguia levantar vôo. Imaginei que tivesse desaprendido a voar. Coloquei minhas mãos em formato de concha para pegá-lo, sem sustos, ela me dizia.

Ele se movia conforme o desespero dos pássaros, tão pequeno quanto frágil. Tentava fugir de mim, aquele bicho que não queria voar, e tentava aprender a andar, aquele pássaro que não queria o ar e queria a terra. Foi então que olhei nos olhos dele, e só então reparei que ele nunca soubera voar.

E então, o que você fez?, quis encerrar logo a conversa. Coloquei o bicho numa gaiola, só nos primeiros dias, para cuidar dos ferimentos. Ele sarou rápido. Tempo depois, tentei soltá-lo, claro, eu que choro só de ver passarinho em gaiola. Não deu certo.

E por que você não o largou de cima de um prédio, pra forçar o folgado a bater as asas? Foi quase isso. Mas ele devia ser meio suicida. Arremessei aquele passarinho, com toda a minha força, para o mais alto que consegui. Mas ele voltou caindo como uma pedra, e não teve jeito. Abri as mãos em concha para salvá-lo mais uma vez.

E mais uma vez ele me dizia com aqueles seus olhos escuros que o fato de ser um pássaro não significava nada. Ele não queria saber de voar.

Assim, ela terminava de me contar a história do passarinho no quintal de sua casa. Foi então que me vi homem-pássaro. E aquela mulher, que eu agora olhava com novos olhos, se tornava uma mulher-pássaro.

Você esteve lá no céu alguma vez, querido, ela me perguntava. Não, você não faz idéia do que é o céu. Você nunca esteve no céu. Eu vi tudo o que é possível ver no céu. Só não me lembro de nada para te contar. Então você não viveu. E nunca esteve por ali.

E por que você preferiu esse asfalto onde os carros não andam, estas ruas que nunca levam as pessoas aonde querem chegar? Se você voasse, chegaria rápido, ou melhor, ao menos chegaria em algum lugar, enfim.

O negócio dela era contar histórias. E salvar pássaros que caíam em seu quintal. Mas volta e meia ela desaparecia também.

Da minha parte, as memórias iam me escapando. Não consigo definir qual é o destino. Ponto final de ônibus, para mim, é só uma ilusão, eu tentava explicar por que não queria usar minhas asas. Pena que só eu não conseguia entender.

Subo apressado, me esfrego naqueles corpos suados, gaiola das mais vagabundas, e vou te procurando entre um ponto e outro, mulher-pássaro.

Sei que você se esconde por entre os pontos de ônibus, e sei que uma hora você sempre diz que se cansa, para então perceber que só lhe resta dar o sinal e pedir para também subir e viajar ao meu lado.Mas você sempre desce quando eu me adormeço ao seu lado.

Quando me dou conta, sozinho, desço, pássaro caído do céu, vou caminhando pelo asfalto, em uma busca eterna, entre pessoas que andam, e vou entrando em novas gaiolas, para te encontrar por trás de cortinas.

Sei que você está atrás dessa cortina. Você, enfim, vai me mostrar para que servem suas asas. E agora sou platéia-ator que espera o momento certo de bater palmas. Posso entrar? É minha vez? Fique num lugar bem alto. Para você, quero bater as palmas da forma mais animada.

Tuesday, February 14, 2006

A bêbada e o equilibrista


É só por um tempo, ela me disse, este emprego é só por um tempo, e contrariado em princípio, rapidamente me converti ao ritual diário de ficar sempre do lado de fora, esperando por sua saída. Nunca tentei entrar para ver o que ela fazia. Adoro ver você aqui, esperando por mim, falava antes de me beijar. Minutos antes, eu acordava sozinho sem ela ao meu lado, e no meio da noite tomava o café da manhã. Você não faz nada o dia inteiro mesmo, e um leve remorso me cutucava, a culpa que surgia como remédio. Placebos para uma vida que não andava. Falávamos em tons monocórdicos que se ampliavam nos silêncios que nos uniam. E ela repetia não precisa gritar, meu amor, o que você me diz eu já pensei, o que você sorri eu já devorei, o que você olha eu já te amei. Mas eu não me guio por premonições que não significam nada, cantávamos juntos, e nunca tínhamos vontade de nos soltar. Sonhos de sair pela noite e chutar as latas de lixo. Eu tentava tomar o mais longo dos banhos, camuflar sujeirinhas e colocar perfumes antes de sair de casa. Tudo para em seguida andar pelos escombros das ruas que mofavam. E ela vivia num mundo só de adultos, de muitas peles, algo barrado para mim, sujinho plastificado que nunca entendia direito coisas grandes. Lá dentro eu não consigo ver a tua pele, entre tantas outras, e só espero o telefone tocar, ela me dizia. Aqui fora as noites são longas, e as ruas nunca terminam, eu tentava completar suas frases. Mas as portas estão sempre entreabertas. Para nós dois nos espiarmos e trocarmos de peles.

Thursday, January 19, 2006

O Encontro



Quando eu te vi pela primeira vez, você caminhava por uma cidade tomada por luzes que brilhavam. Apenas alguns tons te interessavam. Às vezes no claro, às vezes no escuro, continuei cambaleando, invisível, entre diferentes tons, e preferi olhar você de longe, no início. Ainda perdido e tímido, entre os descaminhos da minha antiga vida. Tentando adivinhar aquilo que não se prevê, imaginando rostos que ainda não existiam. E o passar dos dias: conhecer amigos imaginários, amar amores. Queria para uma vida inteira, eu e você dirigindo bravamente nosso carro-submarino em meio à inundação. Eu tinha surtos de deus criador, pretensão dos diabos, domar aquilo que não se cavalga. Por pouco não nos esbarrávamos, por menos ainda não nos esbarramos e por pouco não me tornei cinza novamente. Mas um dia duas luzes se acenderam e conseguimos nos enxergar. Não mais cegos pela luz incessante, não mais perdidos numa sala escura. E então nós dois ouvimos um som gostoso, coceira das boas nos ouvidos. "Oi", era o que ouvíamos. E uma festa em nossas mentes estava prestes a começar.