Wednesday, December 14, 2005

Vamos dividir uma vida?


Minha vida estava prestes a começar de novo. Encabulado entre meus pensamentos-delírios, esperava ela chegar. Queria dizer tantas coisas, esboçava frases e reações para logo depois deixar qualquer fórmula barata de lado. Diria a primeira coisa que viesse à mente. Decidido. E enquanto esperava, tentava criar a nuvem mais bonita. No meio daqueles papeizinhos e dos cafés da mesa, eu tateava minha vida. Não veio nenhum garçom limpar minha vida. Aquela mesma vida que diziam ser a minha, aquela mesma que julgava ser a minha, a mais conveniente. Entre bitucas de cigarro, ficava imaginando como seria essa nova encarnação. Assustado, como quando nos deparamos com algo que não entendemos. Meio triste, já distante daquele mesmo que morreu lá na entrada do bar. Eu estava de luto. Promessas de felicidade que se cumpriam. Eu sorria. E inexperiente. Eram meus primeiros passos. Teria que aprender de novo. E naquela mesa, lá nos fundos, ao mesmo tempo eu sentia o medo do noivo no altar. Ela estava atrasada. E eu, de olhos fechados. Até sentir suas mãos junto da minha. E então abri meus olhos.

A decadência bonita

Quando não sei muito bem o que fazer da vida, saio andando. Simplesmente por qualquer lugar. Pode ser um mero passeio para esticar as pernas. Mas, na maioria das vezes, andando como se estivesse à busca de algo. E, nessa minha imitação de obstinação de caçador, vou esboçando formas para o que procuro. Uma espécie de saudosismo de mim mesmo. E então vejo o eu de ontem. O eu do mês passado. O eu de dez anos atrás. O eu que quase se casou. E, mais para frente, tenho espasmos místicos. Tentativa de previsão de um futuro às cegas, planos estratégicos que mudam a cada esquina vencida.

Nesses momentos bocós/pseudo-intelectualóides (na verdade, pura falta de coisa melhor pra fazer, sejamos sinceros), ainda não achei lugar melhor para trilhar do que a rua Augusta, de cabo a rabo. Aliás, nunca prestei atenção onde ela realmente começa (é lá nos Jardins ou lá no centrão?), ou quantos nomes ela tem (a av. Europa e a Martins Fontes são a Augusta com outro nome, certo?). Mas vou traçando rotas pessoais, tão óbvias em todo o caso, para essa rua que faz um resumão da ópera da vida.

Você é quem escolhe onde é o começo e onde é o final. Tá, vamos pela rota mais pessimista, a da decadência algo bonita, a que rende histórias mais amarguradas. Afinal, é a rua Augusta, gatinhas e gatões, e convém sempre retomar a palavra "punk" e carros assassinos e poluição e São Paulo caindo na sua cabeça, esmagando seu cérebro.

Então, nessa rota mais maldita, você tem o sujeito que nasce em berço limpinho, como a Augusta lá dos Jardins. Região mais valorizada, vizinhos ricos, tem até delegacia e sonhos de segurança lá por perto. Como o cara de boa família, que tem bela educação, amor dos pais, alimentação saudável, aquela coisa de futuro brilhante pela frente.

Ele vai crescendo. Como a Augusta, sua vida vai sempre para o alto. Não é uma jornada fácil. Lá pelas tantas, suas pernas se cansam, e você pára na lanchonete para tomar um suco de laranja. Ninguém disse que seria fácil. Nosso amigo do berço vai enfrentar as criancinhas diabas do jardim de infância. Vai ter seus primeiros traumas. Vai ter que ir à escola mesmo nos dias mais cinzentos de chuva, aqueles dias em que tudo o que queria era ficar em casa tomando chocolate quente enquanto os desenhos animados corriam soltos na TV.

Mas ele vai. Ele vai crescendo. Suas roupas logo são abandonadas, tênis duram poucos meses. Ele fica alto, e titias demônias vão sempre lembrá-lo disso. E ele ganha o passaporte para a adolescência, ele que nunca se interessou muito por alturas. E avisaram que esse presente ele não poderia recusar. E lá pelas tantas, ele se vê no seu ápice físico.

Energia transbordando, um desejo lá bem dentro dele querendo sair, sempre de olho em belos rostos. E tudo que ele quer é devorar esses rostos, e sugá-los, e viver a vida.

Viver a vida.

E ele vê que tem que construir sua vida. E ele vê que tem as armas para isso, seu corpo é jovem, tá preparado para o que vier. Tão bom que pode tentar estragá-lo à vontade. É mais um ser imortal, claro.

À sua frente está a avenida Paulista. E, de repente, as coisas começam a ficar mais planas. Um breve momento de estabilidade. E ele se dá conta que está na plenitude de sua vida. Ganhou belo emprego. Sua produção está a milhão, tudo que ele toca fica genial. E um belo rosto o acompanha, faz planos de viver para sempre com esse belo rosto.

E fica com medo, porque não há mais para onde subir. Sente frio, porque está em um dos pontos mais altos da cidade.

Então, ele segura a respiração e vai em frente. Daqui a pouco, só haverá descida. Ele fica mais velho a cada esquina. Não há mais riqueza, só o charme da decadência. Sim, porque ela, a decadência, tem um charme irresistível que dá uma sobrevida a qualquer morto-vivo.

E, ali, entre mortos-vivos, você vai se divertindo, porque não encontra mais barreiras. E sua perna fica menos cansada porque descer sempre é mais fácil. Você pode até se largar, como os mendigos que se amontoam por ali, já que a lei da gravidade vai te empurrar. É lei. Se você não colocar freios, você cai fácil.

E ele encontra prazeres da juventude por ali, maquiados, e você aspira a pureza. Ele finge que são os mesmos prazeres. Sente que há apenas reflexos daqueles velhos dias. Tantos bares, tantos puteiros. Tantos prazeres à venda.

Prazer de verdade não se compra, ele lembra, mas mesmo assim saca seu talão de cheque. Nunca mais subir, nunca mais ter um belo emprego, nunca mais ter uma produção genial, nunca mais nada sendo como antes. As promessas que não se cumprem. É o fim?

Os malditos sempre sobrevivem, de um jeito ou de outro. Nas páginas da história. Sobrevivem enquanto houver uma pessoa a velar essa história, mesmo que em relato oral.

E enquanto termino na minha cabeça essa revisão da história (de qual personagem mesmo?), fico tentando imaginar como era a Augusta, ou a cidade, nos momentos de virada. Nos momentos que precederam a decadência. Lá pelos anos 70, Brasilsão sofrido, ditadura comendo solta, tascando o cacete na rabiola do povão. Estuprando as cidades, decretando o fim.

Os momentos finais da Augusta. Quando as madames pararam de ir para lá. Quando a primeira loja/café luxuoso do lado do Centro fechou. A abertura do primeiro puteiro. A trepada da primeira puta. O primeiro cliente. A gozada desse primeiro cliente. Sei não, mas acho que ele brochou. E nem gozou.

Lembrei de uma música agora. Citações sempre necessárias.
Do disco Trashland, das Mercenárias:

Ação na Cidade

meu corpo dolorido
minha mente cansada
reprises na tv
reprises no rádio
o medo é gritante
a destruição constante
os meus anos reclamam
ação na cidade

meu corpo dolorido
lágrimas no rosto
eu não tenho armas
eu não tenho nada
imagens, mitos
palavras, palavras
o meu corpo nu
ação na cidade
ação na cidade

Monday, November 21, 2005

O amor em Plutão



Quando fomos morar juntos, ela quis o prédio mais alto da cidade. De nosso apartamento, víamos a cidade inteira. Luzes de neón, faróis cintilantes, chuva ácida, carros voadores. E, lá de nossa torre, víamos as pessoas se doendo. Quando olhávamos mais alto do que o céu, dávamos de cara com Plutão. Eu e ela, garoto-Plutão e garota-Plutão. Órbita irregular, o mais distante dos planetas, 248 anos para rodear o sistema solar. Encontro improvável. Nos encontramos. Nosso caso de amor. Nada de ruim aconteceria conosco enquanto estivéssemos naquela órbita, eu e ela, lá no alto da cidade. Quando nossos planetas se chocavam, ela sentava na janela e comia seu macarrão. Eu ligava a TV, olhava para além da tela e fazia minha oração silenciosa: "Obrigado".
E logo entrávamos em órbita novamente.

Sunday, October 30, 2005

Nosso caso de amor


Ela só procurava uma escada. Eu trabalhava como limpador de janelas, daqueles prédios gigantes, sempre me equilibrando. Minha escada nunca ia alto o bastante. Mas ela quis me escalar assim mesmo. Assim as coisas foram indo. Até o dia em que eu cansei de carregar escadas pela cidade afora. Queria apenas estar no topo, não importa como. Ela não se importou. Estava mais modesta agora. Não queria escalar. Para ela, bastava se apoiar. Uma vez carregador de escadas, sempre pensando em apoios. Dei meu ombro, minhas costas, minha face, minha vida. Ela esquenta minhas costas. E assim vamos indo.

Festa: primitivo eu sou

Volta e meia a gente dava uma festa. E, nos achando tão modernos, éramos apenas primitivos. Na caverninha escura, todos tateando faces que eram reveladas apenas no pipocar fugaz dos estrobos.

E eu ficava me sentindo um bárbaro, um huno sujo, feio e malvado. Que, após degladiar com inimigos em mais uma batalha e se empatufar com uma coxa de um javali assado (com tecos de gordura enfeitando meu rosto e cabelo), vai se esbaldar em sua pista de dança, entre jarros do vinho mais cafajeste.

Nós éramos os índios que cantavam para os deuses. Os esquimós que faziam sua rave em iglus. A tribo africana que reverenciava o Sol. Os cães que cheiram rabos alheios.

Uma pré-pista de dança. Mas, se pensarmos bem, a essência das festas deve ser a mesma. A questão é celebrar. Retornar ao jardim de infância. Deixar a nossa identidade do lado de fora. Quer dizer, ao menos aquela parte da identidade que vai nos tolhendo desejos que não podem ser expressados em dias de não-festas. Amores expressos.

E eu sorria. E a pouca luz não deixava isso evidente para os outros. Mas não era problema algum. Porque aqui, nas festas que a gente dava, éramos representações de nós mesmos. A lenda dizia que nosso verdadeiro eu era o que estava em jogo, se jogando na pista.

Nos abraçávamos...como nos abraçávamos. A cada pessoa que entrava pela porta, uma nova festa. A festa dentro da festa. Inibições deixadas de lado, o álcool e as drogas entrando no ritual do mundo moderno que exorcizou os exorcismos psíquicos e os deuses e os diabos. Padrão ISO-9000; pegue sua senha e tenha seu exorcismo burocrático, conecte-se ao mundo internético de Marlboro.

Nós conversávamos. Todos nós. E falávamos sobre como tinha sido nosso dia. E falávamos sobre como gostaríamos que tivesse sido nosso dia. E falávamos daqueles que não nos quiseram. E falávamos como teria sido boa aquela trepada. Que nunca aconteceu. Que sempre ficaria para o dia seguinte. Falávamos de como o dia tinha sido difícil, de tantas injustiças no trabalho, e de como fulano e fulana foram escondidos ao banheiro para chorar. No banheiro daqui da festa as pessoas apenas aspiram. E, do lado, de fora, as pessoas batem na porta do banheiro porque têm muita água no corpo.

E falávamos sobre o dia em que não precisaríamos mais dessa necessidade quase religiosa de celebrar. Do dia em que as celebrações não acontecessem apenas durante o final de semana. De um dia em que a vida corresse gostosa segunda, terça, quarta, quinta afora. E falávamos e blasfemávamos sobre tudo aquilo que tentávamos ser, mas não conseguíamos. E de como a amiga sorria disso, e de como amigo chorava e se tornava mais um corpo da massa disforme que adentrava a pista.

Além de huno, eu era uma formiguinha. Uma abelha que, sem saber como nem porque, fazia a rota da flor até a colméia. Como o ganso que, com seu devido cérebro de ganso, voava e se organizava aos outros gansos, magnificamente para sua emigração.

Eu abria as portas e dava a festa. E me dirigia ao bar, e tomava meus líquidos, e sorria para quem eu nunca via sorrir durante o dia, e falava, e dançava, e beijava pelos cantos. Aqui era lugar e hora de esquecer a repressão. Consultório prático, campo de experimentações, lugar de médicos e monstros em confronto, com preferência para criaturas de intensidade sexual e instintiva e fraternal disponíveis aos mais felizes dos seres.

Sunday, October 23, 2005

Perto demais

Viramos gente grande, mas continuamos fazendo lição de casa. E fazemos provas e tem toda aquela ansiedade para passar de ano. Só falta estrelinha da tia no caderno. E vamos emburrados pra escola, faça chuva ou terremoto, sol ou maremoto. Tem ainda os amiguinhos da firma. Sentamos lado a lado, como naquelas carteiras grandonas que tinha na escola. E lado a lado, estavam os “normais” e os “esquisitos”.

Falo disso porque hoje minha lição de casa, a missão do dia, foi ir ao Rio de Janeiro. Subir e descer morros, entrar em táxis para gritar, empolgado: "Siga aquele carro", e me sentir num filme de espionagem. Tudo para seguir uma banda de rock. A trabalho, que fique bem claro. Inspetor Clouseau, e não Bond, James Bond, que fique ainda mais claro. Por aqui há mais tropeços do que galanteios.

E o primeiro táxi que pára é dirigido por uma mulher. Aquela expressão cansada, de 40 e poucos anos envelhecidos demais, da dureza adquirida nas ruas, da profissão abraçada como que por falta de opção. E aquele preconceito (meu) ao entrar no carro e pensar, apenas pensar, já que a mente barra qualquer explosão inconsciente de falas, "Nossa, uma mulher". Sim, porque só o fato de ficar espantado já é um tipo de preconceito. Como se, pelo fato de 99,9% de motoristas de táxis serem homens, ser conduzido por dona Suely (esse é o nome dela) fosse algo estranho.

Eita palavrinha que tenho birra. Quer dizer, a maneira como ela é utilizada, sempre de forma algo pejorativa. Se 99,9% das pessoas sente prazer em, sei lá, comer, quer dizer que aquela minoria que come por obrigação ou que transa por obrigação em vez de por prazer (considerando aquela parte da população que pode se dar ao luxo de escolher, claro) é esquisita? Como se o esquisito tivesse que sumir devido à sua "insignificância" numérica perante à multidão de iguais.

Claro, relativizar tudo não ajuda na coisa. Poderíamos dizer "Ah, se o homem mata, isso é da natureza dele, então tudo é válido na vida". Não, gatas e gatos, antropologicamente falando, há um limite para os seres em seu estado selvagem, em seu estado primeiro. As coisas começam a ganhar limites quando a integridade física do outro começa a ficar ameaçada, óbvio. E como lembrou Fred 04, e não Freud, no show aqui no Rio, o senhor de engenho, o dono da fazenda, há uns 100 anos, era aquele cara que falava “Fodam-se os abolicionistas. Eu tenho o direito de ter o meu escravo. Tenho o direito de comprar meu escravo e dar umas chibatadas nele”.


“Ter o direito a ....” não te lembra nada? Todos têm direito a algo. Mas vamos lembrar que o horizonte contempla paisagens mais interessantes que um mero e imenso umbigão.

Mas eu tava falando dos esquisitos. E de lição de casa. O que faz, daqueles 40 aluninhos que receberam as mesmas lições e que viram as mesmas aulas, na infância, se tornar um "esquisito"? E queira ou não, são os "esquisitos", os "diferentes", que incomodam. Que dizem: "Não, obrigado, não quero fazer parte, quero fazer de outro modo".

No fundo, tudo é uma grande bobagem, dividir o mundo em dois. Mas é assim que acaba sendo, vai ser assim. Quando menos vemos, tamos lá: “Nossa, que sujeito exótico”.

Daí você se recorda, sempre com certo desconforto, de como sua classe se dividia em dois quando você era pequeno e era obrigado a fazer aulas de educação física. Quando você ficava numa fila esperando ser escolhido para fazer parte do time de futebol,basquete ou vôlei, e você era um dos últimos a ser chamado. Ou de como, desde muito pequenos, já somos cruéis uns com os outros, rindo das fraquezas alheias, alguns de forma explícita, outros de forma mais velada.

Daí que, voltando, o Rio tem aquela geografia tão gostosa, e tão primitiva, e tão surreal, e tão "esquisita". Fique alguns minutos olhando da sacada do hotel, do prédio, de algum lugar alto que seja, olhando para os morros e a multidão de prédios incrustados em meio aos morros. E comece a imaginar como essa paisagem era há milhares de anos. E de como foi a construção do primeiro prédio, a devastação da primeira floresta, como surgiu o primeiro concreto que tomou o lugar do verde, e do último verde que deu lugar à paisagem de brancos concretos.

Convivência, né? E aqui vai citação do dia:

Viver é conviver
Conviver é coexistir
Coexistir é irremediável

Sunday, October 09, 2005

Vorazes

Ultimamente tenho me lembrado muito do Menino Maluquinho, o livro. E olha que só li na infância. Várias vezes, claro. Pura memória afetiva, daquelas que a gente não esquece. Quando eu era criança, já sabia que aquilo ficaria marcado pra sempre. E que, mesmo no futuro, já adulto, já véião, ainda pegaria fundo. Tô falando especificamente do final, lembra?

Era algo mais ou menos assim: falava que o Menino ficava sempre no gol. E que ele pegava todas as bolas. Mas teve uma coisa que ele não conseguiu segurar. Não conseguiu pegar nas mãos o tempo que passava.

E, então, ele cresceu. Virou adulto. Mas virou um cara legal. Mas um cara legal MESMO.

E eu ficava pensando o que significava virar um cara legal. Quer dizer, até hoje penso o que é ser um cara legal.

O termo "cara legal" perdeu um pouco da magia pra mim quando perguntaram pro Pitta (já devidamente fora da Prefeitura) como ele queria ser lembrado no futuro, e ele disse: "Como um cara legal".

Será que gente como, sei lá, me perdoem a obviedade, o Maluf, pensava em ser um cara legal quando criança? E será que ele se acha um cara legal hoje? E o Lula molequinho, lá nos grotões do Brasil, pensava sequer no futuro?

E a gente aqui? Será que na pressa de São Paulo, ainda resta tempo para lembrar essas coisas de infância? Claro que não, são tempos cínicos, pra que ficar perdendo tempo com essas questões tolinhas, metafísicas, né? Vamos falar que nem homem, discutir o que é importante na vida, fala grosso, bicha! Ai, que saco.

A coisa toda tem lá seu lado de crueldade, enfim. Porque lembrar de sonhos de uma criancinha que pensava naquele seu futuro distante é lembrar as mudanças que surgem, as trombadas da vida, os caminhos, descaminhos, a corrupção em todos os sentidos. Você pode dizer evolução, e não estará errado. Vamos lembrar com carinho nos sonhos perdidos, nos sonhos realizados, e estamos falados.

A UTOPIA

E viramos gente grande e vamos cavando brechas. Nessa brechas, vamos tentando recuperar algum frescor da infância. Senão piramos. Cavamos relíquias e réplicas do tempo em que pensar em virar um cara legal era algo que dava coceirinha na barriga.

O negócio, então, é arquitetar jeitos de voltar a ser criança:

Nunca curti jogar bola. Mas que delícia deve ser, né? Pô, manô, vamo lá? Futebolzinho com o povo da firma na quarta à noite? Gostoso voltar a ser criança por um dia.

Fazer compras. Se jogar na loja de CDs. Tem quem prefira olhar os carros na vitrine. As moças que compram
mil pares de sapatos novos. Ai, belos tempos de fantásticas fábricas de chocolates.

Transar. Você e seu amorzinho lá, agarradinhos, peladinhos. No frio, brincar de conchinha. Momento em que somos mais crianças. Sem pudores, apenas brincando, conhecendo o corpo. Memória afetiva. Intuição, prazer, tato.

Hoje, só intuição. Tenho sonho. Quero dormir que nem um bebezinho.

2002 - Por que o passado? Quem esteve lá...

Ao fim de várias vidas, era quando começava sua vida. E ela foi largada. Menino delicado, pacto de amor, unha e carne, vestimos camisetas iguais. Uau. Vamos furar os dedos e colocar uma luva em nossas mãos. Quando ela voltou para casa, percebeu que não teria mais aqueles momentos que tanto amava. Foi o deslocamento da massa polar. Verão chegando e os corpos começando a suar. Fomos jogados no jogo invisível do movimento ritmado da natureza. Talvez Deus, talvez destino, escolha a sua opção, pense em suas crenças.

E o menino....ai ai, como adorava aquele menino.... Mais uma encarnação que se fora, agora era o início de tudo novamente. Não acredita em ponto zero. O zero, enfim, o ponto de largada, era apenas a continuação de um sistema de numeração invisível. Talvez começasse finalmente a entender a Matemática, tão falada na escola, aquela que achava tão distante de sua verdadeira vocação.

Os números agora diziam tudo, mais do que qualquer falatório dos poetas, dos cantores de rock I wanna be your dog, das cartomantes yeah-yeah-yeahs, estrela-guia. Nova vida, esqueça o passado, tudo é aprendizado. Nem Cleópatra, nem senhores feudais. A nova encarnação tinha que ser inventada agora.

Lembrou-se do primeiro amante. Do segundo amante e de todos os que vieram depois. E pensou em outros nomes, da fase atual, em que o termo "amante" perdia sentido. O mais recente (namorado?) ainda estava naquela zona quase fantasmagórica, do não mais presente, o confuso futuro passado. Chegara em casa, e o menino era outro. Não mais aquele que a fazia gritar, agora apertos de mão, vamos nos falar. Mesmo nome, mesmo rosto, mas outro. Que ia demorar para conhecer.

E por um momento desanimou. Cansaço de fazer tudo de novo, o recomeço. De novo o parto. De novo, jogada no meio de uma confusão, de novo sem entender nada. Mãos estranhas, me leve de novo lá para dentro. O meu mundinho é tudo, me traz meu menino de volta. O roteiro: choro, agora seco, menos visível, mas acompanhado da sabedoria dos prazeres (ô saudade....) e dos sentidos embolados.

Saturday, October 08, 2005

Pai herói

Cadão Volpato, vindo de 3 lugares diferentes:


PAI

Pretendo ter dois lindos filhos
Uma menina e um robusto menino
Botar eles na escola desde o princípio
Mandar às favas os vizinhos
(À noite ouvem nossos ruídos
O que eles ganham eles põem no cofre
Um filho uma árvore e um livro
Herança de gente muito pobre)


E terminar todas as fábulas
Quando eu sair da chaminé
Depois montar na bicicleta
Esperar que eles criem calos nos pés


(À noite ouvem nossos ruídos
Uma vida despojada de sentido)
E assim nós vamos indo
Minha pequena mulher vai dirigindo
E assim nós vamos indo
Meu filho segue torcendo comigo
E assim nós vamos indo


Meus filhos foram me chamar
Um avião estava preso nos fios
Meus filhos foram me chamar

Sunday, October 02, 2005

Mon amour

Essa é contada pelo Woody Allen, mais ou menos assim:

O cara vai ao psiquiatra e diz:

- Doutor, meu irmão pensa que é um frango.

-Por que você não o convence de que ele não é?

-É que eu preciso dos ovos.

Daí Woody Allen conclui:

Os relacionamentos são como esses ovos. Por mais loucos, irracionais e absurdos que os relacionamentos sejam, ainda precisamos deles.

E você?

Você precisa dos ovos?

Eu gosto de ovos. Podem ser ovos mexidos, ovos cozidos. Até cru eu topo. Já experimentou misturar ovo com shoyu e arroz branco japonês bem quentinho? É bom, experimente. Ovo cozido, aquele que você vai descascando e tira aquela pelezinha. Ovo quente, que você come de manhã. Omeletes, então...uma delícia.


Mas o fato é que somos equilibristas de ovos. Às vezes andamos em cima de ovos (ou de suas cascas). E vamos carregando vários ovos na mão.

Às vezes, resolvemos carregar apenas um. E você vai se equilibrando e vai ficando surpreso que o tempo passa e que você não escorregou em nenhum momento. E que ele, o ovo, continua lá, inteirinho na sua mão. Na sua mão quentinha, que vai chocando o ovo.

E um belo dia você se cansa. Você pega aquele ovo que carregou com tanto carinho e cuidado durante um tempão e deixa ele cair no chão. E quando ele está lá no chão, espatifado, você nem sabe mais se deixou cair de propósito ou se foi falta de atenção sua. No final das contas, dá na mesma, não é? Não há como não ficar chateado, claro. Daquele ovo bonitinho podia nascer um pintinho, você pensa.

Bem, já que estou citando Woody Allen, talvez você ache que eu ache o máximo essa coisa de viver relacionamentos intensos e breves etc. (e fracassados? ah, fracasso é tão relativo, você sabe, né?)

Ah, outra digressão básica. Também lembrando ele.

Na galeria de arte, dando em cima de uma moça:

-Oi. O que você vai fazer hoje à noite?
-Cortar os pulsos.
-E amanhã?

Bem, voltando ao assunto.

Não que eu ache o máximo precisar de tantos ovos. E, claro, eu procuro um ovinho para ficar chocando também. Só acho bobeira ficar acreditando em tudo que nos chega mastigado na vida, entre elas esse conceito de amor de supermercado.

Dá preguiça esse desespero em querer achar o ovinho definitivo de sua vida. Essa coisa de querer agarrar logo alguém porque você quer alguém para passar a velhice com você. Esse medo de ficar sozinho. A paranóia de se imaginar véio, carcomido, sem ninguém ao lado.

Amor tem que ser bacana. Um ovo no meio daquela dúzia. Sem idealizar um pouco não dá. Idealizando muito não dá. Amor tem que ser bacana. Para surtar, para gritar, para calar. Para acompanhar. Para crescer. Para procriar. Para evoluir. Para cantar no meio da noite. Para chutar latas no meio da madrugada. Para pedir silêncio no meio da madrugada. Para abraçar com carinho. Para dar beijinho de peixinho. Para trepar. Para arranhar. Para te morder e para soprar, meu amor, já que tenho que te doer. Para agora. Para o dia seguinte. Para quando der tempo. Para sempre e agora. Se não é pra sempre, é pra agora. Um agora que é eterno.

Claro, é uma barra nada agradável ficar sozinho, muitas vezes. O que não gosto apenas é essa busca insana por um parceiro, como se fosse um item indispensável a comprar no supermercado. Você precisa ter alguém. Solteiros são mal-vistos. São os esquisitos. "Se você está só é porque alguma coisa errada você tem", é o que os compradores compulsivos de relacionamentos vão dizer. Relaxa. Acredite em amor. No amor, não no produto amor.

E por que você quer tanto alguém? Você já pensou nisso para além de seu umbigão gigante? Para além do “eu quero alguém”? “Manhéééé, o Toddy tá quente!!!”. “Calma, filhinho dá aqui que eu esfrio o Toddynho pra você”. Provavelmente você quer alguém para "dividir as coisas", imagino. Ou porque "meu emprego tá bacana, a vida tá bacana, só falta um amor bacana para tudo ficar completo". (A vida, um dia, se completa?) Ou porque você quer se apaixonar. Simples assim.

Mas quando a barra aperta, reclamamos que o Toddynho tá quente. E, nessas horas, abrimos os olhos para todos os ovos: codorna, galinha etc.

Então, vamos lá:

- o seu umbigão tá na frente do seu ideal de amor? (e lá vão mais citações: o amor tá no coração ou no cérebro? existe o amor ou apenas as demonstrações de amor?)

- encontrar um ex-amor após muito tempo. Você fica desnorteado? Eu acho fantástico. É um momento que dá a exata dimensão do como vivemos várias vidas apenas em uma. (ah, isso dá muuuito pano pra manga)

- encontrar um novo amor. E você, que não acredita em milagres, o mais cético dos seres, de repente vê um milagre acontecer na sua frente. Com você mesmo. AQUELE milagre. O novo amor encarnado na sua frente.

- vamos falar muito disso pela frente? ah, vamo aí, vai?

Wednesday, September 28, 2005

Para te morder e para soprar, meu amor

Sua profissão é observar pessoas. E nesse mundão que ela vê, tem café expresso e amores expressos

Quero ser VUP

Você se importa se eu falar sobre Curitiba, e não falar sobre os shows? Quer dizer, vou falar sobre os shows, sim, mas talvez você nem repare.

O fato é que eu estava lá no final de semana, a trabalho, para cobrir o Curitiba Rock Festival. E pensei em memória e personalidade, mais do que no Weezer, no Raveonettes ou no Mercury Rev.

Num momento de confraternização entre amigos, momento pré-início dos shows, tomávamos chop quando ouvimos um zumbido poderoso. Uma Ferrari vermelha passava voando pela rua. Depois, alguns milisegundos e a outra Ferrari, logo atrás. Em seguida, a terceira. É a própria gangue da Ferrari, pensei. Tá, damos as costas, coisas de playboy, tem isso em tudo quanto é lugar. Nem deu tempo de me preparar para outro gole, e lá vem a gangue da batida das Ferraris novamente, no sentido contrário da avenida.

E ainda não consigo dar meu segundo gole. Vem menininho pedinte, querendo me vender algumas balas. Recuso, mas ele é insistente. Diferente daqui de SP, onde nossas caras fechadas e corações partidos são nossas couraças, impermeáveis e já entendidas como sinal de negação por qualquer menininho carente. Aqui não há tentativa. Mas ele insiste. E, constrangido, digo que não quero.

E você? O que você faz quando está lá no bar, ou em qualquer lugar que seja, e você é retirado de seu mundo particular, de seus devaneios das conversas com amigos, ou de devaneios pessoais, e é jogado nessa outra realidade?

Não dê esmolas, ensinam todos, tem até cartazes da prefeitura, do governo, espalhados pela cidade dizendo que não devemos dar esmola. E você provavelmente vai pensar (e não estou te chamando de reacionário, tá?. E a coisa extrapola a questão socioeconômica):

"ah, não tenho culpa da situação dos miseráveis"; "não vou dar esmola porque ele vai gastar tudo em bebida/drogas (tóchicos, diria Severino)"; "ah, não é dando dinheiro que vou ajudar o fulano"; "ah, que coisa desagradável ele vir me pedir"; "um dia eu realmente ajudo e irei à uma instituição de caridade"; "por que ele não vai trabalhar de verdade?"; "não vou dar dinheiro porque ele deve sustentar mãe e pai vagabundos, que não trabalham".

Claro, cada um reage de um jeito. Tem aquele que vai se solidarizar com o pedinte, vai dar alguns trocados, e trocar altas idéias com o menininho. Vai querer saber sua história, por que ele está ali e não na escola etc. Nunca vi nenhuma estatística sobre isso, mas acredito que essa situação é de uma minoria.

A grande maioria faz um ato que é tão instintivo, tão reação imediata, que vira quase norma. Você está lá, com seus amigos, entretido em algum papo, altas idéias, altas tirações de sarro, altas confidências, e de repente sua fala é cortada pelo "Tio, me dá um trocado?".

Você pára, como se tivesse sido pego pelo marido traído em pleno ato. Dá um corte no raciocínio que você estava desenvolvendo, e dá de cara com o menininho.

"Não tenho", você diz, constrangido.

E, por milésimos de segundo (ainda mais rápidos do que a gangue da Ferrari), você sente todo o peso de anos e anos do miserê brasileiro nas suas costas, a herança escravocrata, Terceiro Mundo, e lembra o quanto você tem "sorte" por não estar no lugar daquele menino, e de como é esquisito ter sua vida, aquela mesma que você bradava em alto e bom som para seus amigos, interrompida por um simples "Tio, me dá um trocado?".

Você nega, a maioria nega. Faz aquela cara constrangida, riso amarelo, e diz que não tem. Balança a cabeça, faz um teatrinho, faz aquela cara de "Pô, cara, que mal, desculpa aí", mas não se preocupa porque ele vai insistir pouco. Vale mais a pena tentar com algum outro, que não relute tanto em dar o dinheiro.

Mas sabemos que várias pessoas vivem nas ruas, à base da caridade alheia, e você usa isso também como argumento para fechar a mão. Claro que temos dinheiro, estamos lá tomando chop, apenas não queremos dar, por alguma razão que seja. E mentimos descaradamente.

Mas o mais surreal de toda a situação, é quando o menino dá as costas, desiste, e você retoma seu discurso de onde você tinha parado, e volta a falar com seu público _que por sua vez, também entrou por milésimos de segundos nesses questionamentos todos.

E tudo volta ao normal, as pessoas se esquecem do menininho. Ah, mas é tão normal, ele é apenas mais um....

(isso aqui dá pano pra manga. Você já pensou sobre memória e personalidade? Vamos falar mais sobre isso no próximo post?)

E daí vou para o show do Weezer e me vem à cabeça toda aquela história de ser "loser", de ser um perdedor. E lembro do show do Moby, dias antes, em que ele cantou Radiohead e dizia: "Gostaria de ser especial".

Não, eu não estou insinuando que é superficial gostar dessas bandas só porque o Brasil tá pegando fogo. Longe disso. E também não tenho soluções, e não sei se devemos ou não dar esmolas para o menininho.

Mas nesse mundo onde todos se estapeiam para ser VIP e Ferraris competem corridas nas ruas onde os menininhos tentam vender balas (aliás, será que Ferrari pára em sinal? como os menininhos vão pendurar suas balas no espelhinho do carro?), parece que tudo na vida é bipolar.

Parece que não há meio-termo, não há nuances, não há cinzas. Há apenas o preto e o branco. Portanto, se ninguém ordenou e proclamou que você é uma "pessoa muito importante", saiba que não há nada de errado. Tenha orgulho.

Pelo contrário, se o mundo é assim, agarre loucamente a sua carteirinha de VUP, de "pessoa muito desimportante". Ela dá acesso às melhores visões, aliás, à única visão. A visão real, da desilusão, do dia em que não iremos mais nos iludir com efeitos especiais.

Monday, September 26, 2005

Coisas aconteceram em Curitiba

Em Curitiba estar eu. Em Curitiba eu Yoda ver.
E o Mercury Rev diz que o universo é feito de histórias, e não de átomos.
E por isso conto tudo sobre golfinhos psicodélicos, Ferraris vermelhas e lobisomens, mais tarde, tá?

Sunday, September 18, 2005

Fui ao quarto verde; ela, tinha fome de viver

Tarde tristonha de domingo. Dia de coincidências. Você acredita em coincidências? "Coincidências são o sinal de que você está indo pelo caminho certo", li isso em algum lugar. Talvez um biscoitinho chinês, não lembro. Mas que "caminho certo" é um termo safado, isso é. "Caminho certo...." pra onde, exatamente? A psi dizia que coincidências eram eventos simbólicos, uma espécie de sonhos na vida, digamos, concreta. Nada é ao acaso. Acontecimentos que vão se concretizando de alguma forma, enfim. E a teoria do caos e o bater da borboleta, não nos esqueçamos disso.

O fato é que o telefone tocou quando estava de saída de casa. Um amigo das antigas atravessa um luto _ela foi embora há algumas semanas_, e pede colo para mim. Confesso que minha pressa foi maior que meu colo. Bem, não vou me editar aqui e tentar ser "o cara mais bacana do mundo", como todos fazem em blogs. Mea-culpa, você diz. Certíssimo.

Já na rua, já na Augusta, dou de cara com amiga. Ela ia ver Fome de Viver. Eu fui ver O Quarto Verde. Coincidências?

Daí fiquei lembrando do Fome de Viver. A coisa mais anos 80 do filme não é aquela aura cult, as afetações de fotografia, trilha e maneirismos publicitários. Mas sim o romantismo todo da história, aquela mania de morrer de amor em pleno século 20, padecer das dores do coração.

Aquele mundo de Smiths e Joy Division que titios mais velhos que eu me contam, quando "éramos herdeiros de uma timidez criminosamente vulgar" e de quando "o amor iria nos separar dilacerando novamente" em cada canto escuro de bar. E Cazuza, Renato Russo e Caio Fernando Abreu, não nos esqueçamos do mal do século tropical.

É um filme de terror. É um filme de amor. Amor = terror, portanto? Não, não sejamos terroristas amorosos, por favor. Mas não deixa de ser uma bela e nada sutil metáfora essa história da vampira que atravessa os séculos e que vai colecionando amantes.

Para sempre, ela dizia. Que seja eterno enquanto dure, dãããããã. Catherine Deneuve lá, toda bonitona, enquanto seu atual amante, David Bowie, enfim sucumbe à maldição e descobre que a paixão não é para sempre. Ele começa a envelhecer anos em questão de horas. Vemos seu longo martírio (mais dele do que dela). Ele não é mais o mesmo de horas atrás. Ela sabe que tudo acabará, e que a fila, enfim, tem que andar. Próximo amante, plis.

Ela tem vários amores guardados no armário. Todos eles, mortos-vivos, insepultos, lado a lado, como uma coleçãozinha.

Corta pra vida real. E daí você se lembra de todas as vezes em que você um dia encarnou Catherine Deneuve. E também se lembra, com menos facilidade, já que dói mais, de todas as vezes em que você foi David Bowie. E você lembra de como a Paulista está especialmente fria e suja nos últimos dias. E você dá uma olhada no seu armário, e vê que ele é bem espaçoso, e vai pensando no futuro, que cabe muita gente, mas que no fundo, você queria o fim da maldição.

Mas hoje eu fui encarar o querido Truffaut e seu Quarto Verde.

Ele próprio faz o homem que, dez anos após a Primeira Guerra, é um mero "espectador da vida". Prefere viver com os mortos, os seus vários amigos, quase todos mortos. Sua mulher, em especial. Para ela, constrói um altar, o tal do quarto verde.

Assim como o Bowie do Fome de Viver, Truffaut está agarrado ao passado. Ele luta contra o esquecimento. Tenta congelar o tempo, de certa maneira.
(e aqui rápida digressão: mortos e feridos, promessas desfeitas, sonhos e realidade, Brasil e PT. A política está em todos os lugares. Não fujam do assunto e não se digam apolíticos, gatinhas e gatões)

Quarto Verde é filme belíssimo, mas tristonho. Esquisitíssimo. Religioso, já que fala de almas, pega fundo, fundo. Afinal, vivemos nessa ilusão besta de achar que tudo é para sempre. Forever and ever. Igual ao mendigo da esquina, do menino de rua que te pára no farol. Por que algumas pessoas fingem que eles não existem? Por que achar que eles são invisíveis, como fantasmas de quem tentamos fugir?

(bem, deixo para outra ocasião esse enfoque, digamos, social, a-hã?)

A questão aqui é amantes, amados, feridos e amor.

Porque um amor que se foi é um ser dos mais libertários. Joga às favas essa convenção social que todos aceitamos e seguimos às riscas para não pirarmos de vez.

Tá, é muita piração. Peraí. É mais ou menos assim.

Todos nós aceitamos, mesmo que ninguém tenha pedido isso, nossos papéis sociais. Ex: sou fulano A, que trabalha em emprego B hoje, amanhã e depois. Você sabe que sou um sujeito com temperamento C, e que amanhã serei assim, e depois, e depois, e depois, com apenas umas variaçõezinhas aqui e ali, mas tudo dentro de um espectro mais ou menos limitado. Não por acaso, quem foge desses limites pré-estabelecidos, logo é considerado louco (ex.: sujeito que é sempre calminho um dia explode de raiva e ninguém o reconhece. Ele está errado?). Muitas vezes a loucura realmente pinta em algumas pessoas, mas não quero nem entrar no mérito criminal ou psicótico da coisa.

Resumindo: queira ou não, você interpreta um papel na sociedade, e esse papel é chamado de sua personalidade.

No trabalho, você sabe que seu chefe agirá dentro de certos limites. E sua família, e seus amigos, e seu parceiro etc.

O ex-amante, ou o amante que está prestes a se tornar ex, é dos seres que mais assustam porque quebram essa espécie de acordo silencioso, essa certeza social que é tão necessária.

Tá, por mais amigável que seja uma separação, temos lá dois seres que já trocaram e fizeram grandes alterações em seus papéis sociais. E que já não se reconhecem mais. E, que em determinada altura, dependendo do grau da situação, tornam-se perfeitos estranhos.

É que nem uma história clássica do Laerte em que o menino chega em casa e descobre que sua mãe não é sua mãe, que seu pai não é seu pai etc. O pai, a mãe, a irmã tiram a fantasia, como se fosse o final de um episódio do Scooby Dôo, quando o bandido tira a sua máscara, e a sua identidade é revelada. Tudo era uma farsa, eles eram meio que atores em um grande reality show. E o moleque entra em pânico porque tudo que ele conhecia não existe mais.

Credo, tá pessimista demais esse texto, né?

Tô escrevendo sob o impacto dos filmes, você deixa?

Tá, no fundo tudo isso que falei é política, não é? Gente que não se reconhece mais quando olha para trás.

O papo furado vai longe. Vamos tomar cerveja e falar sobre o tudo e o nada?

Tuesday, September 13, 2005

Sunday, September 11, 2005

Tradição

Nasci em 1977. São 28 anos e 8 meses de vida. Nesse tempo, fui crescendo com gente me assoprando noções básicas no ouvido. Vi que o céu é azul, mas nunca entendi direito o porquê. Aprendi que era necessário respeitar pai e mãe. Fiquei sabendo que Papai Noel não existia. E cresci sabendo que o Maluf é corrupto. E nunca entendi direito por que ele era político, já que outra noção básica que eu aprendi na teoria é que os políticos deveriam ser modelos de conduta. E, mais confuso de tudo, aprendi que ele poderia continuar desviando verba pública para seu bolso à vontade que ele nunca seria repreendido por isso.

Mais tarde, o céu continuou azul, mas continuo sem saber o porquê. Tá, basta uma rápida googlezada que eu descubro. Em poucos minutos. Mas não quis saber. Na prática, vi que nem sempre consegui honrar pai e mãe. Coisas de infância e adolescência, você sabe. E fiquei chocado quando descobri que Papai Noel não existia. Mentira. Nunca acreditei nele, e nem houve esse momento de descoberta, mas o que importa é romancear um pouquinho a história. Sempre funciona.

Por isso tudo, tendo a acreditar mais em um gordo Papai Noel no telhado de casa do que receber a notícia de que Maluf foi preso: um final de semana e vários quibes na cadeia. Parece que teve pessoas que comemoraram o fato, como acontece em finais de campeonato de futebol, gente buzinando pela rua, saindo para beber cerveja e celebrar. Era sexta-feira à noite, afinal de contas, e qualquer coisa é motivo para comemorar. Mas, claro, Maluf na cadeia é daquelas coisas que você só vê uma vez na vida, quase um cometa Halley (e eu sou mais um a perguntar: você viu? Eu não, vi um pontinho no céu que me diziam ser o Halley. Hoje, acho que era invenção dos meus tios, que me levaram para o interior para ver o danado, para não me decepcionarem).

Cético e cínico como todos da minha geração são, fico cheio de esperanças com a prisão de Maluf, para depois aquela lufada realista e pessimista me deixar com o pé atrás. Ôpa, é só mais um megashow da PF. Tá, tudo bem, depois da Daslu, eles têm que se superar. Afinal, depois de um Sonic Youth ou Brian Wilson, um festival não pode trazer qualquer coisa. São padrões de excelência que vão sendo criados, e que existem apenas para serem superados. E a prisão do Maluf é o Strokes da PF.

A PF tem um prato-feito na mão. Não é nenhum feijão com arroz. Tem um filezão duro pela frente, gororoba das boas, quibe frito que um dia sonhou em ser um fondue de gente metida à besta. Um dia Maluf disse: "Não tenho contas na Suíça". Mentiu ele, mentiram os políticos, mentiram as pessoas. Todos sempre mentem, mas hoje a moda é das boas. Nada mais daquele papo-furado das mentiras sociais, que todos nós teríamos que cantá-las diariamente, que ela é necessária para azeitar as relações. Um mundo sem mentiras seria melhor? Nunca saberemos, sabemos apenas que quando a moda é pegar na mentira, tudo se desconstrói. Mas desconstrução não é sinônimo de ruína.

Ôpa 2, a prisão de Maluf não vai dar em nada, ele vai sair ileso, com sua conta intocada. Pode até ser, mas o fato simbólico é o que conta, dizem. Sim, precisamos, de tempos em tempos, de símbolos nas nossas vidas. Só sei que quando as certezas que temos na vida se desfazem, perdemos referenciais. E sem referenciais, ficamos desnorteados. E, desnorteados, reavaliamos tudo que nos cerca. É o momento ideal para as mudanças, essa utopia, esse fator que sempre fica na cabeça, mais teoria do que prática, já que mudança não é algo palpável de imediato.

Obviamente isso tudo me anima. Mas, ao mesmo tempo, é algo que ilude. E o grande barato da vida é nos desiludirmos. Exceto para quem prefere viver na bruma de uma hora bêbada (e qualquer Silva deveria saber isso), com a desilusão, temos revelações.

Ilude porque começamos a achar que as coisas, no Brasil, estão mudando. Não estão, sabemos disso. E não é questão de ser pessimista. Claro, na superfície, vemos mudanças. Mensalão, mensalinho. Assistimos à morte, ao vivo, de um sistema. Dia-a-dia, testemunhamos mais porradas na execração pública do presidente que um dia salvaria o Brasil. Alguém acreditou nisso? Lula é barbudo e gordinho, tipo o Papai Noel. Se ele sabia de tudo? Se ele é menos culpado porque todos fazem isso? Todos temos nossas respostas para tudo isso, criamos gabaritos imaginários na cabeça. E nada nos tirará essas convicções. Do mesmo jeito que um palmeirense não conseguirá fazer de um corintiano um palmeirense, seja pela retórica, seja por sopapos, seja por goleadas.

Isso tudo me lembra aquela cena final desse último Star Wars, lembra? Quando os soldados recebem as ordens de eliminar todos os jedis, e eles vão sendo assassinados um a um. Mas é um outro episódio dessa série que mais me dá medo. É aquele chamado O Império Contra-Ataca. Sabemos muito bem qual é esse império, não é? E eles vão chegar com fome. Claro, tudo é uma grande conspiração, mas bem que o seu Lula ajuda! Eita nóis! Tão mordendo muito seu bigode, presidente, não deixa as coisas na cacunda, não!

Bem, você já viu que entro em digressões e vou escrevendo, né? Já que aqui não é jornal, vai ser assim. Tipo seguindo o fluxo da consciência. E sem correções e leituras posteriores, exceto as de ortografia e gramática, tá?

Então, voltando ao fator prisão do Maluf.

É fator indissociável do fator Daslu, do mensalão etc., claro. E sabe o que todo esse "momento de ética", de "mudanças" da política brasileira me lembra? As pessoas que fazem análise. Já me explico.

Antes de qualquer coisa, claro que não tenho nada contra quem faz análise. Fiz durante alguns pares de anos, foi bom enquanto durou, mas resolvi largar há outro par de anos. Na boa.

E, de uma maneira EXTREMAMENTE generalizada, comecei a prestar atenção nas pessoas que eu conheço que hoje fazem análise. No final das contas, reparei que ela gera um comportamento meio perigoso (tá, todos esses amigos e amigos hoje tão lidando melhor com seus grilos etc. etc.). Porque a análise funciona meio que como um fator de compensação. Tenho problemas? Tenho neuras? Sou meio escroto com os outros? Ah, tudo bem, faço análise e estou tentando lidar com isso, me dá licença, sei o que estou fazendo e falando.

Coisas do inconsciente coletivo. Lá onde dou minhas esticadas, segunda-feira é o dia que fica mais lotado. Pesquisinha informal com amigos que fazem academia ou qualquer outro tipo de atividade física também mostra que segunda-feira é o dia que fica mais cheio. Tem um fator óbvio que explica isso, já que segunda é o dia em que todos têm um pouquinho mais de tempo, em que as pendências do trabalho vão começar a ficar acumuladas durante a semana.

Mas tem também outro fator, que é mais subjetivo, parte de uma teoria da conspiração minha, que minha professora deu risadas, meio que concordando. As pessoas se lesam durante o fim de semana. Bebida, cigarro, noites mal-dormidas etc. Quem é pseudo-saudável, público de academias, sofre de uma notável ressaca moral. E lá vão para a segunda-feira limpar as impurezas do corpo e as mais difíceis de serem limpas, as da mente.

Sei lá, esse lance todo de corrupção, CPIs e tal me dão medo por isso. Que na superfície fique essa hipocrisia toda de que as coisas estão mudando, mas que por baixo, tudo fique igual. No fundo, fica, sabemos. O que muda é que talvez as pessoas tenham mais cuidado na hora de cometer a corrupção. Que irá desestimular os políticos a roubar seus trocos. É um pensamento ingênuo meu, sei disso (e há uma enorme mudança nisso tudo que digo que não está mudando), mas a coisa é mais subjetiva, mais ligada à própria psicologia do ser humano.

Não me diga que aquele papo furado de caras pintadas significou algo? Algo que serviu mais para dar assunto aos jornais e suprir a carência que a moçada do começo dos anos 90 tinha de pertencer à algo (tudo cheirava à perfume, tudo cheirava a um espírito juvenil, lembra?). E por acaso quem era jovem no começo dos anos 90 é mais politizado etc. e tal, e que o impeachment do Collor garantiu uma nova era, de um Brasil melhor, menos corrupto? Ai, tô sendo chato, né? Pessimista, jornalistinha revoltado?

Eu sei que fico assim quando tento olhar por baixo da superfície, que é onde a coisa pega mesmo. Tá, hoje assisti ao documentário Ônibus 174, e relembrar certas coisas bate fundo. E sou só eu, ou você também reparou que o número de mendigos dormindo na rua aumentou nos últimos anos? Seja bairro pobre, bairro rico, não há como não esbarrar com um homem ou uma mulher, jovem, criança, velho, dormindo nas calçadas. Posso ser superficial na minha análise, mas é para isso que eu olho mais, e é para isso que acho que as pessoas poderiam/deveriam olhar mais.

E não me venha me dizer que eu trabalho em ONG para aliviar a minha consciência, a tal da culpa social.

Maluf foi preso, e tenho medo da superficialidade de que a história acabou por aí. Gosto de um cinema "sem limites", como dizia Rogério Sganzerla, filmes modernos (modernos no sentido histórico, nada a ver com a descolândia, que fique claro), desconfio do mundo clássico, tudo lá, explicadinho, com historinhas, começo, meio e fim. Sabemos que as coisas não acabaram por aí.

Semana passada fui lá na abertura daquele festival bacana que é o Videobrasil (descolândia todo em peso por ali). Bem, a coisa toda começou com uma performance/monólogo/discotecagem que discutia a questão racial no Brasil, mais precisamente a questão do negro, tendo como base o circo todo que foi a história do Grafite e do jogador argentino.

Nem venho aqui discutir se a performance foi boa ou não, isso não importa. Mas é o que mais importava por ali, pelo jeito. Todos falavam sobre a forma, enquanto gênero artístico. Ah, é manjado demais, Ah, esse discurso está batido demais, Ah, não tem nada de novo. Ah, é constrangedor. Cinismo impera. Gosto e acredito em pinturas naifys.

Bem, a coisa vai longe. Vamos no fluxo dos pensamentos.