Wednesday, December 14, 2005

Vamos dividir uma vida?


Minha vida estava prestes a começar de novo. Encabulado entre meus pensamentos-delírios, esperava ela chegar. Queria dizer tantas coisas, esboçava frases e reações para logo depois deixar qualquer fórmula barata de lado. Diria a primeira coisa que viesse à mente. Decidido. E enquanto esperava, tentava criar a nuvem mais bonita. No meio daqueles papeizinhos e dos cafés da mesa, eu tateava minha vida. Não veio nenhum garçom limpar minha vida. Aquela mesma vida que diziam ser a minha, aquela mesma que julgava ser a minha, a mais conveniente. Entre bitucas de cigarro, ficava imaginando como seria essa nova encarnação. Assustado, como quando nos deparamos com algo que não entendemos. Meio triste, já distante daquele mesmo que morreu lá na entrada do bar. Eu estava de luto. Promessas de felicidade que se cumpriam. Eu sorria. E inexperiente. Eram meus primeiros passos. Teria que aprender de novo. E naquela mesa, lá nos fundos, ao mesmo tempo eu sentia o medo do noivo no altar. Ela estava atrasada. E eu, de olhos fechados. Até sentir suas mãos junto da minha. E então abri meus olhos.

A decadência bonita

Quando não sei muito bem o que fazer da vida, saio andando. Simplesmente por qualquer lugar. Pode ser um mero passeio para esticar as pernas. Mas, na maioria das vezes, andando como se estivesse à busca de algo. E, nessa minha imitação de obstinação de caçador, vou esboçando formas para o que procuro. Uma espécie de saudosismo de mim mesmo. E então vejo o eu de ontem. O eu do mês passado. O eu de dez anos atrás. O eu que quase se casou. E, mais para frente, tenho espasmos místicos. Tentativa de previsão de um futuro às cegas, planos estratégicos que mudam a cada esquina vencida.

Nesses momentos bocós/pseudo-intelectualóides (na verdade, pura falta de coisa melhor pra fazer, sejamos sinceros), ainda não achei lugar melhor para trilhar do que a rua Augusta, de cabo a rabo. Aliás, nunca prestei atenção onde ela realmente começa (é lá nos Jardins ou lá no centrão?), ou quantos nomes ela tem (a av. Europa e a Martins Fontes são a Augusta com outro nome, certo?). Mas vou traçando rotas pessoais, tão óbvias em todo o caso, para essa rua que faz um resumão da ópera da vida.

Você é quem escolhe onde é o começo e onde é o final. Tá, vamos pela rota mais pessimista, a da decadência algo bonita, a que rende histórias mais amarguradas. Afinal, é a rua Augusta, gatinhas e gatões, e convém sempre retomar a palavra "punk" e carros assassinos e poluição e São Paulo caindo na sua cabeça, esmagando seu cérebro.

Então, nessa rota mais maldita, você tem o sujeito que nasce em berço limpinho, como a Augusta lá dos Jardins. Região mais valorizada, vizinhos ricos, tem até delegacia e sonhos de segurança lá por perto. Como o cara de boa família, que tem bela educação, amor dos pais, alimentação saudável, aquela coisa de futuro brilhante pela frente.

Ele vai crescendo. Como a Augusta, sua vida vai sempre para o alto. Não é uma jornada fácil. Lá pelas tantas, suas pernas se cansam, e você pára na lanchonete para tomar um suco de laranja. Ninguém disse que seria fácil. Nosso amigo do berço vai enfrentar as criancinhas diabas do jardim de infância. Vai ter seus primeiros traumas. Vai ter que ir à escola mesmo nos dias mais cinzentos de chuva, aqueles dias em que tudo o que queria era ficar em casa tomando chocolate quente enquanto os desenhos animados corriam soltos na TV.

Mas ele vai. Ele vai crescendo. Suas roupas logo são abandonadas, tênis duram poucos meses. Ele fica alto, e titias demônias vão sempre lembrá-lo disso. E ele ganha o passaporte para a adolescência, ele que nunca se interessou muito por alturas. E avisaram que esse presente ele não poderia recusar. E lá pelas tantas, ele se vê no seu ápice físico.

Energia transbordando, um desejo lá bem dentro dele querendo sair, sempre de olho em belos rostos. E tudo que ele quer é devorar esses rostos, e sugá-los, e viver a vida.

Viver a vida.

E ele vê que tem que construir sua vida. E ele vê que tem as armas para isso, seu corpo é jovem, tá preparado para o que vier. Tão bom que pode tentar estragá-lo à vontade. É mais um ser imortal, claro.

À sua frente está a avenida Paulista. E, de repente, as coisas começam a ficar mais planas. Um breve momento de estabilidade. E ele se dá conta que está na plenitude de sua vida. Ganhou belo emprego. Sua produção está a milhão, tudo que ele toca fica genial. E um belo rosto o acompanha, faz planos de viver para sempre com esse belo rosto.

E fica com medo, porque não há mais para onde subir. Sente frio, porque está em um dos pontos mais altos da cidade.

Então, ele segura a respiração e vai em frente. Daqui a pouco, só haverá descida. Ele fica mais velho a cada esquina. Não há mais riqueza, só o charme da decadência. Sim, porque ela, a decadência, tem um charme irresistível que dá uma sobrevida a qualquer morto-vivo.

E, ali, entre mortos-vivos, você vai se divertindo, porque não encontra mais barreiras. E sua perna fica menos cansada porque descer sempre é mais fácil. Você pode até se largar, como os mendigos que se amontoam por ali, já que a lei da gravidade vai te empurrar. É lei. Se você não colocar freios, você cai fácil.

E ele encontra prazeres da juventude por ali, maquiados, e você aspira a pureza. Ele finge que são os mesmos prazeres. Sente que há apenas reflexos daqueles velhos dias. Tantos bares, tantos puteiros. Tantos prazeres à venda.

Prazer de verdade não se compra, ele lembra, mas mesmo assim saca seu talão de cheque. Nunca mais subir, nunca mais ter um belo emprego, nunca mais ter uma produção genial, nunca mais nada sendo como antes. As promessas que não se cumprem. É o fim?

Os malditos sempre sobrevivem, de um jeito ou de outro. Nas páginas da história. Sobrevivem enquanto houver uma pessoa a velar essa história, mesmo que em relato oral.

E enquanto termino na minha cabeça essa revisão da história (de qual personagem mesmo?), fico tentando imaginar como era a Augusta, ou a cidade, nos momentos de virada. Nos momentos que precederam a decadência. Lá pelos anos 70, Brasilsão sofrido, ditadura comendo solta, tascando o cacete na rabiola do povão. Estuprando as cidades, decretando o fim.

Os momentos finais da Augusta. Quando as madames pararam de ir para lá. Quando a primeira loja/café luxuoso do lado do Centro fechou. A abertura do primeiro puteiro. A trepada da primeira puta. O primeiro cliente. A gozada desse primeiro cliente. Sei não, mas acho que ele brochou. E nem gozou.

Lembrei de uma música agora. Citações sempre necessárias.
Do disco Trashland, das Mercenárias:

Ação na Cidade

meu corpo dolorido
minha mente cansada
reprises na tv
reprises no rádio
o medo é gritante
a destruição constante
os meus anos reclamam
ação na cidade

meu corpo dolorido
lágrimas no rosto
eu não tenho armas
eu não tenho nada
imagens, mitos
palavras, palavras
o meu corpo nu
ação na cidade
ação na cidade