Thursday, December 17, 2015

A lembrança encobridora como formação do inconsciente* (um texto para a pós-graduação)



Em "Lembranças Encobridoras" (1899), o processo de análise empregado por Freud em relação a uma recordação de infância de seu paciente assemelha-se ao seu método de análise de sonhos, condensado em "Sobre os Sonhos" (1901). Os dois textos compartilham noções como "formação de compromisso", "conteúdo latente" e "deformação". É possível fazer uma analogia entre recordações infantis e sonhos, uma vez que ambos representariam manifestações disfarçadas de desejos. Da mesma forma que podemos nos dedicar a entender o porquê de acontecimentos aparentemente banais da infância terem ficado retidos na memória (muitas vezes em detrimento de experiências de impacto na biografia pessoal de um indivíduo, como o nascimento de um irmão, morte de um parente, um acidente, uma mudança de residência etc.), há um trabalho de análise a ser empregado para compreender por que motivo acontecimentos insignificantes dos "restos do dia" reaparecem nos sonhos. Como escreve Freud no primeiro texto, "há uma relação direta entre a importância psíquica da experiência e sua retenção na memória".

Para efeitos de síntese, vou chamar o paciente de Freud analisado no texto de Cientista, em referência à sua profissão. Como este trabalho proposto pede a análise da análise, utilizarei uma ordem cronológica dos eventos conforme as conclusões tiradas por Freud e o Cientista ao fim do relato em "Lembranças Encobridoras". Apesar de a lembrança de infância obviamente ter sido o primeiro acontecimento em uma linha do tempo, ela entrará em dois momentos nesta descrição (como ela supostamente ocorreu e como foi rememorada), uma vez que tal recordação se mostrará como o resultado de uma série de processos (assim como também o é um sonho manifesto).

Situação 1 - O cenário: dia, campo, colina e casa ao fundo, onde uma camponesa e uma babá conversam. É a cidade natal do Cientista. Ainda criança, ele está brincando na grama com o primo e a Prima (em caixa alta porque ela é um personagem importante). Cada uma das crianças colhe flores amarelas (dentes de leão). Mas os meninos acham que as flores da menina são mais bonitas, e resolvem roubar seus ramos. Ela chora e sai correndo em direção às duas adultas. Como consolo, a menina ganha pão dessas mulheres. Vendo isso, os dois meninos largam as flores e também correm para elas, em busca de pão.

Por que o Cientista se lembra de acontecimento tão sem importância, sendo que na mesma época ocorreram fatos literalmente marcantes, como um ferimento no rosto que lhe rendeu uma cicatriz? Os passos seguintes nessa construção vêm descritos a seguir.

Situação 2 - O Cientista, pouco tempo depois do imbróglio com os primos, se muda com os pais para a cidade, devido a má situação financeira desses. Seguem-se "anos difíceis e longos". Sente-se incomodado na cidade, e recorda com nostalgia da cidade natal e dos campos.

Situação 3 - Aos 17 anos, o Cientista retorna à sua cidade natal para uma visita de férias e se hospeda na casa de uma família amiga. Impressiona-se com a prosperidade financeira desses, em oposição à conquistada pela sua própria família. Apaixona-se à primeira vista pela filha do casal (que chamarei aqui de Moça Campestre), que na ocasião usa um vestido amarelo, mas não o mesmo amarelo das flores da  Situação 1. Tímido, ele mantém essa paixão arrebatadora em segredo. Durante sua estadia, ele faz longos e solitários passeios pelos campos e cria fantasias. Imagina como teria sido bom se a falência do pai não tivesse acontecido e pudesse ter permanecido no campo. Assim, ele e a Moça Campestre teriam crescido juntos e se apaixonado.

Situação 4 - O Cientista tem 20 anos e nem se lembra mais da Moça Campestre. Faz uma viagem de férias a outra cidade, onde agora moram seus tios e reencontra o primo e a Prima (os mesmos da Situação 1). Essa família também prosperou muito financeiramente. Nessa ocasião, o Cientista estava na universidade e só queria saber de estudar. Não se apaixonou pela Prima. Mas percebeu que seu pai e seu tio arquitetavam secretamente um plano para que ele se casasse com a Prima e morasse onde o tio morava. Pai e tio estavam preocupados com o futuro do Cientista, que, a julgar pelo foco de seus estudos, não se direcionava para uma carreira de estabilidade e facilidades financeiras. O plano secreto foi abandonado quando pai e tio perceberam que o Cientista estava determinado em seguir seu próprio rumo.

Neste momento, certas lembranças de infância do Cientista começam a surgir.

Situação 5 - Anos depois, o Cientista já está formado e passa por dificuldades de colocação no mercado, uma vez que ainda é um novato. Ele começa a reconhecer que seu pai, na Situação 4, foi bem intencionado ao se preocupar com o futuro profissional e financeiro do filho. O casamento arranjado com a Prima lhe pouparia das dificuldades que passava agora e compensaria os anos difíceis da infância/adolescência decorridos da falência do pai. O Cientista precisa batalhar para conquistar o "pão" de cada dia.

Situação 6 - No mesmo período, o Cientista faz uma viagem aos Alpes e vê flores que se parecem com dentes de leão (as flores da Situação 1), cujo amarelo é o mesmo da Moça Campestre.

Situação 7 - A lembrança da Situação 1 começa a emergir. No entanto, a lembrança surge com detalhes e ênfases que intrigam o Cientista. Na sua recordação, o pão comido era extremamente delicioso, de um sabor prazeroso quase alucinatório. O destaque dado ao amarelo das flores também lhe chama a atenção.

A partir daqui, Freud passa a estabelecer pontos de contato entre as situações e busca demonstrar por que motivo essa lembrança ficou retida na memória do Cientista e por que ela surge com essas aparentes distorções. O Cientista, segundo Freud, possuía dois conjuntos de fantasias que representavam "a influência das duas mais poderosas forças motivacionais: a fome o amor".

Em uma dessas fantasias, o Cientista imaginava que sua vida era muito difícil em termos financeiros e que tudo teria sido mais fácil se tivesse ficado no campo. Isso o levou a associar o "pão" pelo qual precisava batalhar diariamente ao "pão" obtido facilmente na infância, no campo. Isso acentuou a lembrança do sabor do pão que comeu quando criança. Teria sido saboroso permanecer no campo,  teria sido mais fácil se ele tivesse optado por uma profissão "pão com manteiga" (mais básica, objetiva, de empregabilidade mais certa), e por isso o pão da lembrança é idealizado e se apresenta tão saboroso. Essa idealização de uma vida mais fácil também retorna quando associa o amarelo das flores que vê nos Alpes (Situação 6, momento em que passa por dificuldades financeiras) à Moça Campestre e ao campo (Situação 3). Mas o Cientista também jogou fora a oportunidade de se casar com a Prima, o que também lhe teria proporcionado uma situação financeira melhor (Situação 4). Convém lembrar que, quando criança, foi o Cientista quem roubou as flores da Prima (Situação 1). Naquele momento ele também jogara fora algo relacionado à Prima. Daí também uma associação com o amarelo das flores. A força motivacional aqui é a fome, na definição proposta por Freud.

A outra fantasia diz respeito à outra força motivacional: amor.

O Cientista jogou fora as flores amarelas da Prima, quando criança. O ato, inicialmente inocente, pode ser interpretado por mentes adultas mais atentas, como uma metáfora de sentido sexual: roubar uma flor de uma moça é uma violência, como deflorar, tirar sua virgindade. O desejo sexual pela Moça Campestre se projetou e retroprojetou para a Prima (que foi simbolicamente deflorada pelo Cientista), uma vez que as duas mantêm a conexão, na mente do Cientista, com o campo. Vários elementos diferentes foram misturados.

Neste ponto, os textos "Lembranças Encobridoras" e "Sobre os Sonhos" também apresentam vários pontos em comum. Em "Sobre os Sonhos", Freud faz a distinção entre "sonho manifesto" (aquilo que o indivíduo efetivamente sonhou) e o "sonho latente" (aquilo que o sonho efetivamente quis dizer: o significado do sonho, que é decodificado via processo de análise). Os conteúdos latentes dos sonhos, em sua visão, são realizações de desejos. Em alguns casos, principalmente nas crianças, tais desejos surgem sem disfarces, enquanto na maioria das pessoas adultas tais desejos passam por um processo de deformação e se apresentam irreconhecíveis, absurdos, ininteligíveis para a mente do estado de vigília. Quando se trata do segundo caso, diz-se que houve o "trabalho do sonho", uma "deformação onírica" que transformou os conteúdos latentes no conteúdo manifesto.

No caso analisado em "Lembranças Encobridoras", vemos que as recordações de infância passam por um processo semelhante ao descrito em relação aos sonhos em "Sobre os Sonhos". Os conteúdos latentes do Cientista eram: 1) que bom seria se eu tivesse permanecido no campo e me casado com a Prima ou Moça Campestre, fazendo assim minha vida mais fácil em termos financeiros e 2) que vontade de ter sido menos tímido e ter tido relações sexuais com a Moça Campestre.

A deformação do latente (aquilo que o Cientista sentia) para o manifesto (aquilo do qual ele se lembra e, tal como um sonho, se transformou numa lembrança modificada) utiliza os seguintes mecanismos: condensação, deslocamento, figurabilidade e elaboração secundária. Farei a seguir, uma brevíssima síntese de tais processos.

Na condensação, o conteúdo manifesto apresenta-se em duração temporal muito menor, reduzida, do que o conteúdo latente. Cada elemento do sonho é sobredeterminado, ou seja, cada elemento do sonho leva a núcleos temáticos que vão se cruzando. No sonho, Fulano pode ser uma mistura do Sicrano A com Sicrano B. No caso do Cientista, "campo" se associou à Prima e à Moça Campestre; o amarelo desempenhou papel de ponte entre infância e presente, assim como o pão a ser batalhado e o pão delicioso do passado.

O deslocamento mostra que acontecimentos aparentemente banais são investidos de enorme energia psíquica. O Cientista pensava em fome e sexo, e investiu de força uma recordação trivial de infância que possuía os elementos necessários para que conexões e associações pudessem ser efetuadas inconscientemente. Como diz Freud em "Sobre os Sonhos", "o material psíquico dos pensamentos oníricos inclui, habitualmente, recordações de vivências marcantes __ não raro da primeira infância". O caso do Cientista mostra que a primeira infância serviu como elemento cristalizador de pensamentos oníricos.

Os dois outros processos, figurabilidade e elaboração secundária, acabam se misturando nesta transposição de conceitos da análise dos sonhos para a análise das lembranças do passado, ou "lembranças encobridoras". O inconsciente, no caso aqui discutido, utilizou imagens visuais já existentes na memória do Cientista para representar suas intenções latentes. Não foram representações surgidas do acaso, ou criadas ao acaso. Associações de cores, palavras e pessoas, além de metáforas substituídas por imagens e deslocamentos de afetos e energias psíquicas em diferentes momentos da vida do Cientista foram forças em atuação.  Para Freud, o passado não é um fato selado: ele se transforma e adquire diferentes interpretações em diferentes momentos da vida de uma pessoa. Já a elaboração secundária fez o "trabalho final" de dar ênfase a certos aspectos dessa lembrança, como o sabor acentuado do pão e o amarelo vivo das flores.

O termo "lembranças encobridoras" já explicita a noção de que certas lembranças escondem algo. Essas lembranças encobridoras realizam tarefa semelhante à  deformação onírica. Em determinados casos, há um desejo inconfessável e que causa grande agonia por parte de um indivíduo. É necessário que tal desejo se mantenha inconsciente, escondido. Uma enorme carga de repressão e energia é desprendida para exercer essa censura. Diz Freud, em "Lembranças Encobridoras", que "há fundamentos mais gerais que têm uma influência decisiva na promoção do deslizamento dos pensamentos e desejos recalcados para lembranças infantis (....) É como se a própria recordação do passado remoto fosse facilitada por algum motivo prazeroso: forsan et haec olim meminisse juvabit (talvez algum dia nos seja agradável recordar estas coisas)".

O Cientista tinha dois desejos recalcados (defloramento e conforto material), e ambos lhe causavam certa vergonha, angústia, e permaneceram inconscientes (até certo ponto). Houve, então, uma "formação de compromisso". O conteúdo recalcado precisou se tornar manifesto, mas sob uma negociação. Foi necessário uma deformação da apresentação dos desejos, para que não assustassem o Cientista, e para que "enganassem" sua censura inconsciente. Tais desejos usaram um disfarce, uma fantasia, para que pudessem se apresentar à consciência, sem causar danos ao Cientista, e para que pudessem ser liberados pela censura.

Para isso, conteúdos tão nitidamente adultos e sexuais buscaram elementos à disposição na memória do Cientista que fossem seu exato oposto, mas que ao mesmo tempo se encaixassem como representações e metáforas dos conteúdos latentes. A infância, e a noção de inocência a ela associada, serviram como corporificações, como representações de tais pensamentos "impuros". O inconsciente pegou o que estava mais próximo e à sua disposição para efetuar seus processos de deslocamento, condensação, figurabilidade e elaboração secundária. As Situações descritas mostram, em ordem cronológicas, como pontes foram sendo criadas entre um pensamento e outro e "coladas", entre uma associação e sua representação/substituição.

Com a deformação e a formação de compromisso, tais desejos que causariam enorme constrangimento ao Cientista em sua vida de vigília (ou consciente), puderam chegar à consciência, de forma disfarçada, sem causar angústia ao próprio e ao mesmo tempo satisfazendo sua censura e sua necessidade de exprimir tais pensamentos.

*Escrito por Bruno Yutaka Saito em 4/7/2015 como avaliação da disciplina Formações do Inconsciente na pós-graduação em Teoria Psicanalítica na PUC-SP

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