Sunday, January 30, 2011

Beleza sofrida



Seu amor te deixou? Perdeu o emprego? O médico deu uma notícia ruim? Seja qual for a desgraça, de tempos em tempos somos forçados a atuar como personagens de uma trama indesejada. Em momentos assim, o pensamento fica martelando, reverberando a má nova. Costumo relaxar um pouco quando entro numa sala de cinema, para entrar em outro mundo.

Muito tempo atrás um conhecido me recomendou a leitura de "Cartas Portuguesas", de Mariana Alcoforado, um dos "exemplos mais ardentes de amor desesperado da literatura internacional". Era para eu parar de sofrer um pouco por ter levado um fora de uma namorada e entender o que era o verdadeiro sofrimento. Para colocar meu martírio em perspectiva.

De forma um tanto inconsciente, fui ver "Biutiful" e "Um Lugar Qualquer", filmes que abordam formas bem distintas de encarar as dores do mundo.

Grosso modo, há quem divida os sofrimentos em dois modos. A forma burguesa e a forma proletária. O filme de Sofia Coppola representaria a primeira; o de Iñárritu, a segunda.

Nesse raciocínio estreito, limitado, diríamos que o sofrimento burguês é "coisa de gente que nunca lavou roupa no tanque". Coisa de gente mimada, que está reclamando de barriga cheia. E que o sofrimento proletário é o autêntico, justificável, aquele que realmente merece ser expresso e ouvido.

Assistindo a "Biutiful", vemos não uma ou duas, mas uma avalanche de desgraças a se abater sobre nosso herói, Javier Bardem. Ele tem câncer, apenas dois meses de vida, duas crianças pequenas para criar, nenhum tostão, vive às turras com a mulher bipolar, sobrevive de trambiques envolvendo chineses e africanos ilegais.

Desde "Amores Brutos" Iñárritu vem expondo as mazelas que recaem sobre os menos favorecidos, o destino que cai sobre nós de forma implacável. Mas tento entender o que sobra além da denúncia, do tratamento de choque. De forma bem explícita, "Biutiful" nos mostra o lado dos excluídos, que nem tudo é uma maravilha (desta vez, em Barcelona). Ao abordar o que há por trás da pirataria, por exemplo, parece propaganda institucional, aquelas que vêm antes dos filmes em DVDs originais e nos cinemas.

Na overdose de desgraças, "Biutiful" nos anestesia. O realismo exacerbado se torna tão insuportável que tudo se encaminha para o surreal; e o efeito é anulado.

Talvez um pouco como na vida, como quem busca atalhos (drogas, entrega obsessiva no trabalho etc.) para escapar da realidade difícil.

Não são poucos, no entanto, aqueles que têm acusado Sofia Coppola de ter feito um filme vazio, superficial. "Um Lugar Qualquer" seria apenas um lamento de uma pessoa bem nascida.



Vejo no minimalismo de "Um Lugar Qualquer" uma força que extrapola classes sociais.

Acompanhamos o tempo todo o personagem de Stephen Dorff. Sofia o filma apenas de fora, não entra na sua psicologia. Talvez porque Dorff, o personagem, seja vazio, não tenha realmente nada por dentro. Ou melhor, talvez ele tenha anulado o resto de humanidade que possuía antes de embarcar no universo dos bem de vida, dos milionários. Está sempre num estado adormecido, entorpecido, enrolado na cama.

O que ele tem para ensinar à filha? Ele é bom no quê? Até no Guitar Hero, parece não ser grandes coisas. É um herói de ação, às voltas com carros de luxo, helicópteros e mulheres, mas ele não age. É um herói de ação entalado numa vida/roteiro sem ação.

Observar a desação de "Um Lugar Qualquer" é um convite para olhar a si mesmo. Talvez daí o desconforto de alguns espectadores.

Não por acaso, a referência aos vampiros de "Crepúsculo". Dorff é uma espécie de vampiro que, ao ser mordido pela fama, deixou de viver. Não parei de pensar em pessoas como Marilyn Monroe ou Michael Jackson, ou mesmo Kurt Cobain. Celebridades que tiveram um começo de carreira sofrido e que, de alguma maneira, nunca conseguiram superar traumas do passado. Que, de certa forma, acabaram procurando o próprio fim precoce.

Existe um tipo de sofrimento mais "nobre" do que o outro? Na hora da dor, quanto mais por dentro da própria dor você estiver, não é possível pensar muito, e todos se igualam. Olhar de fora e criticar é fácil, como se você estivesse usando uma armadura protetora.

3 comments:

Can Guzmán said...

Oi Bruno! Então você chegou em casa! ^^
Ainda estou esperando Biutiful por aqui, mas pude assistir Somewhere e fiquei pensando, na verdade, em Tetro e em como o segundo parece tão mais complexo que o outro, quando na verdade, Somewhere, pelo menos ao meu ver, exigiu mais de mim, tamanha sua simplicidade. Filha e pai, personalidades distintas. A primeira coisa que me perguntei foi por que as cenas extensas? Voltas e voltas de carro, performances inteirinhas das moças do pole dance, entre outras. O que ela quis dizer com isso? Custou um pouco, mas quando dei por mim, estava pensando que a personagem de Dorff estava mais ao redor dele do que nele mesmo e que embora parecesse fácil de assimilar, na verdade levou tempo e incomodou. Em oposição a "desação" de Somewhere, Tetro tem mais ação e vai se mostrando pedacinho por pedacinho no decorrer da intriga e que bonito ver o teatro e música se misturando no filme. Você já assistiu, Bruno?
Enfim, espero Biutiful para poder compartilhar algo por aqui. Mas concordo, Bruno, que fica mais fácil criticar uma coisa em detrimento da outra quando julgamos superficialmente. Acho que para entender melhor Somewhere, é preciso quase entrar na personagem de Dorff e perceber que tudo que está fora dele o incomoda, embora seja o mundo dele. Não é o cara do carro potente, rodeado de mulheres, etc, mas o cara incomodado com isso e que passa essa sensação pelas voltas e voltas de carro, longos minutos pensando, o sono chegando, a vida passando.

Kelton Gomes said...

"I'm not even a person."

Acho que a tua resenha bate com as minhas impressões, Bruno. No fim das contas, acho que sofrimento não se mede. Não acho que Johnny Marco sofre menos que Uxbal.

katia abreu said...

não me lembro a citação exata, mas wittgenstein falava algo sobre isso, né? sobre a sua dor ser só sua e ninguém poder compreender exatamente a dor do outro. (nem mesmo me lembro de que escrito é isso... apenas fixei a ideia, pra sempre, desde que fui apresentada a ela...).

ambos os filmes me deixaram meio sem reação. vi somewhere há já algumas semanas - e não conclui, até agora, se gostei ou não. o que ficou foi a sensação de vazio mesmo... biutiful vi ontem - sai do cinema estranha, entre lágrimas sufocadas pelo odor forte daquelas cenas. só consegui sentir o cheiro abafado da desgraça toda.

enfim...

welcome back. =)
(vou tentar seguir seu bom exemplo e voltar a escrever também...)