Monday, August 01, 2016

A ilusão do pensamento original - uma noite em 1994



            – Ele me disse que eu tenho que pensar por mim mesmo, que não devo ficar seguindo o que os outros falam só para seguir a maioria – Daniel estava inquieto, perturbado, com uma conversa que tivera dias antes com sei lá quem. – Mas daí eu questionei: se eu fizer isso, mesmo que seja pensar por mim mesmo, eu não estarei seguindo um conselho seu?
           
            Não vou me lembrar o que disse para ele naquela noite, numa festa em sua casa, provavelmente nada de relevante, só sei que até hoje, mais de 20 anos depois, o questionamento de Daniel me parece válido, de uma sagacidade precoce, existencial, cuja resposta eu ainda não saberia dar. Não é por mero acaso que a cena dessa conversa tão profundamente permanece encravada na minha memória. Talvez porque não haja resposta definitiva, talvez porque ele estivesse correto, talvez porque é um questionamento que absorvi para a minha maneira de encaminhar a vida, talvez porque é uma dúvida que me atormenta. Acreditar que se pensa por si mesmo, independentemente de forças externas, pode não passar de uma ilusão. Mesmo quando não se percebe, não raramente, os atos e os pensamentos são tomados oposição ou por adesão a uma ideia, a um grupo de pessoas, a um símbolo que nivela sutilezas.
           
            As partes muitas vezes são invisíveis, acaba-se generalizando para um todo. Ainda que esta realidade da globalização e da internet e dos símbolos de consumo universal, um McDonald's ou Starbucks aqui é igual ao de qualquer parte do mundo, busque amortecer diferenças e choques, o estrangeiro levanta as bandeiras do estereótipo na frente de outro tipo de estrangeiro. Somos diferentes, mas isso não é a causa das guerras. Num país estranho, o estrangeiro assume o posto de embaixador de sua própria pátria. A realidade de milhões de indivíduos resumida num pobre coitado. Quando não há entendimento nos idiomas,  o velho truque dos fonemas e imagens reconhecíveis por si só, e lá vão samba, Pelé, Ronaldo e Carnaval a criar conexões.
           
            O homem das cavernas ainda vive em nós. Toda vez que esse homem via ou ouvia algo semelhante a um tigre, já saía correndo, fugia, antes que seu cérebro pudesse processar a informação. Era, e ainda é necessário sobreviver. Agir antes de pensar. No piloto automático, todas as cores do mundo tornam-se 0 ou 1. O problema é viver nesse estado de (des)atenção permanente, mesmo quando o tigre já não mais espreita na entrada da caverna. Neste estágio da evolução já não haveria mais justificativa para o pensar vir depois do agir. Se o pensar vier em algum momento, já podemos contabilizar um lucro. Chegamos à Lua, mas o tigre continua a nos assombrar.
       
        Antes de mais nada, há uma idealização. Acreditar que se pensa por si só, que se é um pensador original e independente, criativo, o tiraria da horda de seres mecanizados, muito cansados para se desviarem da rota, que adotaram mantras e pensamentos saídos de velhos clichês enraizados no dito popular, ou lendas e rituais ancestrais que continuam sendo contados e realizados, mas cuja origem há muito se perdeu. A dança continua, mas não se ouve mais a música. Tem a biologia a preencher o nosso hardware. Tem a linguagem, a fala, o idioma primeiro, heranças do país em que nascemos, dos pais que tivemos, do país em que fomos levados a viver. Tem os hábitos que vêm lá de trás, dos avós dos avós, que vão passando para seus filhos como o bastão de uma corrida de revezamento, mas quem é um pouquinho mais acordado vai, em determinado momento dessa corrida sem vitoriosos, fazer algumas perguntas básicas: o que é este bastão? para quê estou carregando este bastão? por que estou correndo tanto? por que estou passando este bastão para a frente?
       
        A conversa com o Daniel foi na cozinha da casa em que ele morava com a família. Tínhamos todos menos de 20 anos. Era aniversário de seu irmão mais velho. Estávamos sentados na mesa da cozinha. Hoje, em sonhos, eu diria para ele que não há problema. Estamos sempre reproduzindo algo. Só fato de você levantar essa questão, e enxergar que você não é o centro de nada, que você é o mero resultado de milhares de anos de história, já faz de você uma pessoa que enxergou muita coisa.

No comments: