–
Ele me disse que eu tenho que pensar por mim mesmo, que não devo ficar seguindo
o que os outros falam só para seguir a maioria – Daniel estava inquieto,
perturbado, com uma conversa que tivera dias antes com sei lá quem. – Mas daí
eu questionei: se eu fizer isso, mesmo que seja pensar por mim mesmo, eu não
estarei seguindo um conselho seu?
Não
vou me lembrar o que disse para ele naquela noite, numa festa em sua casa, provavelmente
nada de relevante, só sei que até hoje, mais de 20 anos depois, o questionamento
de Daniel me parece válido, de uma sagacidade precoce, existencial, cuja
resposta eu ainda não saberia dar. Não é por mero acaso que a cena dessa
conversa tão profundamente permanece encravada na minha memória. Talvez porque
não haja resposta definitiva, talvez porque ele estivesse correto, talvez
porque é um questionamento que absorvi para a minha maneira de encaminhar a
vida, talvez porque é uma dúvida que me atormenta. Acreditar que se pensa por
si mesmo, independentemente de forças externas, pode não passar de uma ilusão. Mesmo
quando não se percebe, não raramente, os atos e os pensamentos são tomados
oposição ou por adesão a uma ideia, a um grupo de pessoas, a um símbolo que
nivela sutilezas.
As
partes muitas vezes são invisíveis, acaba-se generalizando para um todo. Ainda
que esta realidade da globalização e da internet e dos símbolos de consumo
universal, um McDonald's ou Starbucks aqui é igual ao de qualquer parte do
mundo, busque amortecer diferenças e choques, o estrangeiro levanta as bandeiras
do estereótipo na frente de outro tipo de estrangeiro. Somos diferentes, mas
isso não é a causa das guerras. Num país estranho, o estrangeiro assume o posto
de embaixador de sua própria pátria. A realidade de milhões de indivíduos
resumida num pobre coitado. Quando não há entendimento nos idiomas, o velho truque dos fonemas e imagens
reconhecíveis por si só, e lá vão samba, Pelé, Ronaldo e Carnaval a criar
conexões.
O
homem das cavernas ainda vive em nós. Toda vez que esse homem via ou ouvia algo
semelhante a um tigre, já saía correndo, fugia, antes que seu cérebro pudesse
processar a informação. Era, e ainda é necessário sobreviver. Agir antes de
pensar. No piloto automático, todas as cores do mundo tornam-se 0 ou 1. O
problema é viver nesse estado de (des)atenção permanente, mesmo quando o tigre
já não mais espreita na entrada da caverna. Neste estágio da evolução já não
haveria mais justificativa para o pensar vir depois do agir. Se o pensar vier
em algum momento, já podemos contabilizar um lucro. Chegamos à Lua, mas o tigre
continua a nos assombrar.
Antes
de mais nada, há uma idealização. Acreditar que se pensa por si só, que se é um
pensador original e independente, criativo, o tiraria da horda de seres
mecanizados, muito cansados para se desviarem da rota, que adotaram mantras e
pensamentos saídos de velhos clichês enraizados no dito popular, ou lendas e
rituais ancestrais que continuam sendo contados e realizados, mas cuja origem
há muito se perdeu. A dança continua, mas não se ouve mais a música. Tem a
biologia a preencher o nosso hardware. Tem a linguagem, a fala, o idioma
primeiro, heranças do país em que nascemos, dos pais que tivemos, do país em
que fomos levados a viver. Tem os hábitos que vêm lá de trás, dos avós dos
avós, que vão passando para seus filhos como o bastão de uma corrida de
revezamento, mas quem é um pouquinho mais acordado vai, em determinado momento
dessa corrida sem vitoriosos, fazer algumas perguntas básicas: o que é este
bastão? para quê estou carregando este bastão? por que estou correndo tanto?
por que estou passando este bastão para a frente?
A
conversa com o Daniel foi na cozinha da casa em que ele morava com a família.
Tínhamos todos menos de 20 anos. Era aniversário de seu irmão mais velho.
Estávamos sentados na mesa da cozinha. Hoje, em sonhos, eu diria para ele que
não há problema. Estamos sempre reproduzindo algo. Só fato de você levantar
essa questão, e enxergar que você não é o centro de nada, que você é o mero resultado
de milhares de anos de história, já faz de você uma pessoa que enxergou muita
coisa.
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