Monday, August 15, 2016

Amor da pedra lascada

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            Penso em você todos os dias, mas ainda não sei quem é você. Por enquanto, você é apenas uma abstração, talvez uma extensão de mim, mas daí penso se não é sempre assim. Tudo que nos rodeia, amigos, amores, parentes, trabalho, objetos, discos, livros, apenas uma extensão dos pensamentos, gostos e paixões, imantada e gravitando ao redor deste fugidio e tão ilusório senso de ser que distraidamente chego a confundir com a tal da identidade.
            Tento imaginar como você seria no outro extremo, no fim de tudo, quando separados, vamos nos afastando mais e mais até um se tornar uma ideia vaga, apenas um conceito destituído de carne que o outro chega a confundir com aquele ser que lá naquele momento anterior era apenas um desejo de si mesmo. Um manancial de potencialidades e futuros prazeres. Um ímã sedutor porque nele eu me dissolvia e por breves instantes não tinha mais a necessidade de ser eu mesmo, e, não tendo essa necessidade de reafirmação de ser eu mesmo, era o caminho do encontro, e não precisava mais falar em eu. Um ser tão amado que chegava a confundir comigo mesmo, e chegava a me questionar por que, enfim, tanta necessidade de ficar me vendo refletido em seus olhos, e ficar procurando pontos em comum, afinidades e diferenças irreconciliáveis, mas mesmo nestas eu me agarrava porque na complementaridade me fortalecia. E não precisava mais ficar citando tanto eu.
            De você, não sei muita coisa. Sei seu nome, seu rosto, o resto é tudo suposição, construção, como um autor em busca de uma história, um artista com uma tela branca. Como um ser humano em busca de um sentido de unidade, que precisa criar uma narrativa básica de identidade para construir seu dia a dia, para não se perder na imensidão da liberdade que é poder acordar cada dia e, assustadoramente, não ser o mesmo de ontem, e a cada dia começar tudo do zero novamente, como um Alzheimer que se inicia a cada manhã. Uma identidade para levantar da cama, lavar o rosto, comprar um pãozinho na padaria antes de ir para o trabalho. E, na volta, trazer um mimo para te agradar.
            Você, no entanto... ou, melhor, a vontade que tenho de você que ainda não conheço, é uma busca por um aprimoramento e um compartilhar de vida e união de forças e mentes e corações que retorna a um estado básico, dos tempos da aurora da vida individual de proteção e reconhecimento e de aniquilamento da sensação tão devastadora da certeza da solidão. Talvez pensar em você seja uma maneira de somar um zero com um zero que resulta nem em zero nem em um. Não digo fusão, confusão. Porque nos confundimos no amor, três meses de pura endorfina, sete anos até a coceira da biologia bater e as crias já andarem por conta própria.
        Você e eu somos potencialidades ambulantes, cada um refletindo à sua maneira os sonhos do outro, cada um enxergando no outro um poder adormecido, um objetivo a ser alcançado, um braço a mais para remar neste barquinho solto num oceano de horizontes sem terra firme. Você é um grande mistério, e assim eu tento te desvendar, e ao tentar te imaginar eu vou me refinando porque vejo que é necessário ser autêntico e verdadeiro e nada esconder, e que de nada adianta ficar preso  a algumas das convenções mais devastadoras, a começar pela convenção de fidelidade a si mesmo, já que o si mesmo ficou lá para trás, aquele que acordou pela manhã e escovou os dentes já não é o mesmo que, agora, cansado ao fim do dia, retorna ao banheiro para escovar os dentes antes de dormir.
           

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