Monday, May 21, 2007

Vida de espera


Hachiko chegou em Tóquio em 1924, pouco depois de nascer, em Odate. Era um cão Akita, prestes a conhecer e a se perder na cidade grande. Seu dono era o respeitável senhor Hidesamuro Ueno. Um homem bem metódico, do jeito que os cães e sua natureza essencial, repetitiva e quase mecânica, tanto apreciam. Trabalhava como professor na Universidade de Tóquio, no departamento de agricultura. Homem que amava a natureza e os bichos. Tivesse vindo para o Brasil, provavelmente moraria no interior de São Paulo para cultivar tomates, alfaces e muita cenoura.

Mas o sr. Ueno nunca teve a necessidade de sair do Japão por questões econômicas. Nunca saiu do país. Pra falar a verdade, nem chegou a ver a Segunda Guerra. Ele era um homem que gostava de paz.

O cãozinho do sr. Ueno não se diferenciava dos seus semelhantes e devotava ao seu dono aquela fé adorável e algo tola e muito feliz que apenas os seres que amam demais e questionam de menos podem ter. Dia após dia via seu dono sair de casa, de manhã, para ir trabalhar. No fim do dia, Hachiko não segurava a ansiedade e ia de encontro ao seu dono, perto da estação de trem de Shibuya, onde o sr. Ueno desembarcava para, acompanhado de seu cão, retornar ao lar.

Dias felizes, de um cotidiano ordinário, comum, de um homem solitário, amante dos cães, das alfaces e dos tomates. Um professor honrado, que encontrou o equilíbrio naquele cotidiano tranqüilo de calmos dias sem guerras.

Mesmo longe das balas e do campo de batalha, o sr. Ueno não podia escapar da sina de todos os que um dia nasceram e do dia-a-dia obediente que segue à risca a ordem natural das coisas, da tradição genética, cultural e ancestral. Como todos os outros donos de cachorros, como todos os professores, como todos os amantes da natureza, o sr. Ueno sucumbiu à sua natureza de ser humano e morreu. Desgaste natural das suas funções biológicas.

Hachiko não entendeu direito o que estava acontecendo. Ele tinha pouco mais de um ano, mas, mesmo se tivesse mais idade, não entenderia. Mesmo que não fosse um cachorro, não aceitaria. Seria muito mais fácil viver naquele mundo particular, imune ao que estivesse acontecendo na realidade conhecida como a normal.

O sr. Ueno, que odiava quebras no seu cotidiano, não voltou para casa. Morreu lá mesmo na universidade. Deve ser algo bem estranho não voltar mais para casa.

A casa continuou lá, apenas mais solitária, e Hachiko ficou aquela tarde na estação de trem, esperando pelo sr. Ueno. Pela primeira vez em sua vida, o sr. Ueno dava um bolo, e não comparecia a um encontro.

Hachiko não entendeu nada. Em sua jovem mente, já estava programado, de forma indelével, aqueles encontros diários.

Arrancaram de Hachiko a sua paixão por regras cotidianas. E Hachiko não tinha mais para quem devotar toda a sua atenção e aquilo que se convencionou chamar de amor.
Hachiko continuou aparecendo todas as tardes. Quem sabe o sr. Ueno não apareceria, de repente, o maior atraso de sua vida, todo atrapalhado e pedindo desculpas. “Fui comprar cigarro, mas não tinha a minha marca”, ele diria, para reprovação de Hachiko, que não entenderia por que, àquela altura do campeonato, seu dono resolvera entrar para o mundo dos fumantes. Naquele tempo, havia apenas o mundo dos fumantes e dos não-fumantes.

Durante 11 anos Hachiko continuou indo à estação de trem. Muitos ficaram comovidos. Quem acreditava no coração, via em Hachiko um exemplo único de amor e fidelidade ao ser amado. Estas pessoas acreditam que o ser humano tem muito a aprender com os bichos. Outros, que acreditavam mais na mente, acham que os bichos apenas imitam o ser humano. Ou melhor, que humanos também são bichos, no final das contas, e que certos atos de ambos são muito parecidos, o que acaba dando mais ou menos na mesma. Para estes, Hachiko até amava seu dono, mas amava muito mais aquele monte de restos de comida que os que acreditavam no coração, emocionados, davam para o cão persistente. Hachiko morreu de barriga cheia e com um sorriso no rosto.

Seja o dono morto, seja a comida, Hachiko amava algo. Talvez já no fim da vida tivesse apenas uma vaga lembrança dos carinhos do sr. Ueno. Sua ida diária à estação de trem já tinha outros significados, outras motivações, e chegou um momento em que Hachiko ia para lá apenas porque tinha que ir.


Como Adèle H., a filha de Victor Hugo, que, largada pelo amante, continuou durante anos obcecada pela sua paixão, até que a obsessão virou loucura, o rosto do amante, uma vaga lembrança, e o amor, uma entidade ainda mais abstrata, auto-sustentável, descolada de uma referência real. Quando, muitos anos depois, cruzou por acaso com o ex-amante na rua, não o reconheceu. Ela se lembrava de que amara alguém, algo, mas nem sabia mais quem era o foco de tanto amor. A fome de amor continuava, mas ela se tornara impossível de ser saciada.

Hachiko continua lá, na estação de trem. Os que o amavam ergueram uma estátua, à saída da estação de trem de Shibuya, em sua homenagem. Shibuya é um dos bairros mais decolados e modernos de Tóquio. É nele que tem aquele cruzamento absurdo que aparece em tudo que é filme e cartão-postal de Tóquio.


Quando abre o sinal para os pedestres, surge uma multidão de todos os lados. É fácil se perder no meio da multidão, enquanto os olhos e os ouvidos ficam hipnotizados pelos luminosos e coloridos prédios gigantes. Neste cruzamento, a expressão “apenas mais um na multidão” ganha novos significados, porque é isso mesmo, literalmente. Você perde seu rosto.

Os jovens dominam Shibuya. Todos com os melhores cortes de cabelo e as roupas mais adoráveis, à procura de amor, querendo ser vistos por alguém, admirados por qualquer coisa que seja. Não ser apenas mais alguém com cabelos pretos e olhos castanhos.

E a estátua de Hachiko é o principal ponto de encontro dos jovens. Todos marcam seus encontros com os amigos, amantes, ficantes, inimigos, usando a estátua de Hachiko como ponto de referência.


Durante todo o dia, Hachiko continua sua vigília, enquanto dezenas de jovens ficam lá, solitários durante eternos minutos, enquanto aqueles por quem esperam não chegam. Ficam concentradíssimos em seus mais modernos celulares, enviando enlouquecidamente dezenas de caracteres em mensagens de textos.


Muitos voltarão para casa sozinhos, ou irão ao bar sozinhos, para conhecer outras pessoas.


O grande problema é que Hachiko nasceu numa era em que não existia telefone celular. Por isso ele espera e sabe que seu grande amor nunca iria lhe abandonar.

3 comments:

Anonymous said...

Oi Bruno-san,
Moro em Shizuoka-ken, e quando eu estiver em Shibuya, vou lá passar pra ver a estátua de Hachiko. Venho mais vezes te visitar, ok?
Abraços
Madoka

Bruno said...

Oi, Madoka! Sim, vá ver a estátua! Em frente, tem um vagão de trem que é uma espécie de museu, dá uma olhada também. Beijo!

Miguel Marcarian said...

ah, gostei.
acho que cheguei aqui por conta da sua crítica ao novo trabalho do Beck. nem sou fan, mas gostei do jeito do texto. é, foi por isso que cheguei aqui.
e esse texto, me deu vontade de escrever.
se tiver paciência e tempo, para não dizer saco, leia meu blog, http://karyokeesoul.blogspot.com/
é isso.
Miguel