Wednesday, May 16, 2007

100 pernas



Tinoko já fazia parte da mobília de casa. Chegando tarde, cansado e esfomeado, achava perda de tempo preparar alguma coisa para comer. Achava desperdício de energia arrumar a cama. Vou acordar amanhã cedinho mesmo, ele decorava sempre os mesmos argumentos, está tão de noite, deixo pra comer amanhã. Já treinei meu estômago. Vou dormir tão pouco mesmo, pra que cama? Além disso não quero poluir meu travesseiro.

Ele já era parte da mobília de casa, e sua especialidade era se transformar no Homem-Sofá. Tinoko era um verdadeiro camaleão, adquirindo a capacidade de se confundir com o meio. A harmonia com o ambiente ao seu redor era tão grande que, às vezes, se esquecia de existir. Mas ele garante que, quando some durante o sono, e apenas o velho e desgastado sofá aparece solitário na sala, com aquele buraco e sua mortífera mola-osso exposta (e lembrar que tudo começou com uma inocente bituca de cigarro), ele está invisível apenas para os olhos de Tonika.

Tonika, já no final da história, queria apenas um lugar quente e macio para apoiar a cabeça. Servia um sofá com a mola-osso exposta, servia a coxa de Tinoko, a essa altura já um molde vivo da cabeça de Tonika. A cabeça de Tonika em sua coxa já fazia parte de seu ser, do mesmo modo como ele era um pedaço daquele sofá, daquela sala, daquela casa.

Mas Tonika vai partir e terá que achar um novo sofá. Tinoko não sabe bem o que fazer com a sua coxa, que carrega um molde único, agora inútil. Até amputaria a perna caso não precisasse dela para outras coisas.

Provavelmente Tinoko terá uma paisagem ainda maior pela frente. Poderá se transformar em sofá, em cama, em geladeira até. Terá então várias noites para não preparar o jantar, e não arrumar a cama, porque vai acordar cedo mesmo, e é perda de tempo se preocupar com detalhes tão breves, se a noite é curta assim.

Tinoko terá que fazer uma bela faxina. Terá que revirar seus armários, esvaziar suas estantes, colocar suas roupas para tomar um pouco de sol. Tinoko tem que ouvir de novo seus velhos CDs, reencontrar os livros que moldaram sua vida e fazer as primeiras sessões de cinema de sua coleção particular. Tudo para tentar se lembrar de quem era antes de se transformar no Homem-Camaleão e quem, afinal, largou aquela bendita bituca.

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