Tuesday, September 11, 2007

Dos tempos do estado

Há uns cinco anos eu só tava lendo Caio Fernando Abreu. Devo ter lido tudo, eu estava monotemático. Meus amigos não aguentavam mais eu falando dele. Mas passou. Agora só tô lendo o Haruki Murakami (valeu, Simone).

Por isso não acreditei quando a Nina me contou que o Caio é supermoda nos fotologs. E lembrei que vivo tentando contar esse conto para o Edu, porque vamos almoçar só lá pelas 3 da tarde todos os dias, e já tão cansados e tão famintos, e rindo para acabar com a rabujentice que volta e meia ameaça aparecer. Acho que ele me entende. É um conto do Caio quando ele fazia crônicas no Estadão. E fiquei com saudades do tempo em que eu trabalhava lá, escrevendo no Zap!, que nem existe mais.

Passou, passou.

Mas dá uma lida.



Deus é naja (texto do Caio Fernando Abreu)

Tenho um amigo, cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos há muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.

Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele –humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou esta: -“Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim...” Descemos o elevador rindo feito hienas.

Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas. Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: -“Por favor, preciso de uma jamanta às 20h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque vai estar no bolso esquerdo da calça”. Às 20h14, na tal esquina (uma ótima esquina é a Franca com a Haddock Lobo, que tem aquela descidona), você olha para esquina de cima. E lá está - maravilha!- parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem um dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: -"Morro feliz. Era tudo que eu queria..."

Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor na barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na Praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu" - ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além da mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema - Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humour?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?

Deus é naja - descobrimos outro dia.

O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu, às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece - como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.

Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma jamanta. A mil por hora.

O Estado de S. Paulo, 15/07/86

5 comments:

Simone Iwasso said...

Já tive a fase Caio F. também - até hoje, aliás, de vez em quando recorro às cartas dele... O Murakami é a atual paixão (que bom que ela é contagiante, e se precisar de empréstimos, desde que voltem, tenho muitos deles já, em português, espanhol, inglês..)

Bruno said...

aliás, simone, o livro de cartas do caio saiu quando vc trabalhava na ilustrada, se não me engano! naquela época, eu devo ter lido umas 3 vezes em seguida. Era doença já.....(eu vou começar agora a ler o Kafka on the shore, o que vc me diz?) beijo!

Simone Iwasso said...

Me lembro, comprei naquela época já!!! hehehehe. É que eu ainda era uma foquinha tímida e quieta ali naquele ambiente, se é que você se lembra...Essa semana mesmo, num dia de bode, peguei as cartas. Eu e uma amiga (a amarílis, por sinal) brincamos que é a nossa bíblia. Kakfa on the shore é sensacional - pra mim é um dos mais bem resolvidos e bem escritos dele. O livro tem uma arquitetura muito diferente, labiríntica, é super complexo. Você vai gostar. Ah, eu fiz um post sobre uma entrevista dele, passa lá ver depois. Beijo!

Simone Iwasso said...

Eu to lendo After Dark agora... Um amigo me trouxe dos EUA. Depois te digo o que achei!

Bruno said...

ei, simone, claro que eu me lembro de vc aqui! vc sentava do meu lado, aturando meu mau humor!!! hahahha. Sabe que depois de um tempo parei de ler as cartas porque tava virando obsessão....vc viu que fizeram o filme do Dulce Veiga? aliás, vc sabia que ele faz uma ponta no outro filme do Almeida Prado, o Perfume de Gardênia? nem curto muito o filme, mas é engraçado ver o Caio rapidinho, com fala e tudo. Era algum comentário bem gay, tipo 'será que ele é?' que ele faz nessa ponta!