Monday, September 03, 2007

Amor no osso



Quando nós terminamos, resolvi tirar uns dias de folga. Fiz uma voz de doente, liguei lá para o serviço, disse que estava com umas dores, sem especificar direito o que era. As dores, hoje, são tão genéricas, vêm de tantos lugares, que eles nem me questionaram. Mas eu estava mesmo doente, só não era uma doença oficialmente aceita.

Fiquei quietinha, sem sair de casa. Sem fazer barulhos, procurava me mover o mínimo possível. Se eu me mexesse, eu sabia que algo em mim quebraria. Resisti à tentação de ficar lembrando os últimos momentos, por que deu errado, o que eu tinha feito, o que ele tinha feito.

Em vez disso, preferi pensar sobre como seria meu próximo namorado. Ou amante, melhor, acho que namoro só de tempos em tempos. Não dá para emendar um no outro, né? Eles ficam todos parecidos uns com os outros quando a gente faz isso, eu acabo trocando os nomes e, no fundo, eu adoro sofrer um pouquinho, durante um tempo. Fico me sentindo chique. Solitária, mulher abandonada, abraçada na minha garrafa.

Decidi que, quando encontrar meu próximo amor, terá que ser um amor básico. Algo primitivo. Não, não estou falando de sexo. Quero que ele e eu sejamos apenas esqueletos. Não quero mais pele. Amor no osso. Na essência das coisas.

Não vamos nos maquiar tanto para nos amar. Não teremos mais faces, não teremos mais pêlos. Não teremos mais corpo, apenas uma estrutura primeira. Não vou olhar para seu corte de cabelo, você não vai olhar para as minhas roupas. Não quero saber quanto você ganha, porque enfim não teremos que trabalhar, vamos fazer apenas o que gostamos.

Talvez a gente não converse tanto, afinal, não teremos boca, nem garganta, nem pulmão, mas vamos transmitir pensamentos, isso eu tenho certeza. Nunca terei certeza de quando você estará me olhando no olho, porque não teremos olhos, e não precisarei escovar os dentes antes de te beijar, porque talvez a gente nunca chegue a se beijar.

E quando o desejo arder, se ele arder, iremos transar, mas quando a gente transar, vamos apenas ralar, e vamos fazer barulhos, porque seremos iguais em cima e embaixo, e então não teremos mais sexo. Mas vamos continuar nos encaixando, porque os ossos duram bastante, e não apodrecem tão rápido quanto a carne.

E o amor vai continuar, soterrado por camadas e mais camadas de terra, e seremos descobertos pelos arqueologistas do futuro, porque no futuro seremos artefatos do passado. Amores do passado.

2 comments:

lenore wompescu said...

o finalzinho do texto me lembrou uma canção do chico, das que mais gosto, chamada "futuros amantes". conheces?

lenore wompescu said...

Futuros amantes
Chico Buarque/1993


Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você