Thursday, October 19, 2006

O kitsch e o noir



Não é muito difícil entender por que "Dália Negra" divide opiniões. Para começar, não é um entretenimento leve, daqueles para se assistir despreocupadamente entre uma pipoca e outra ao lado da namorada. Afinal, acompanhar as imagens de uma mulher que é cortada ao meio e, quase pior, a narração de um legista que conta como certos órgãos internos da vítima foram removidos, não é algo muito agradável para quem não é fã de programas policiais do mundo cão da TV _além de a digestão da pipoca pedir temas mais amenos.

Mais do que isso, "Dália Negra" incomoda porque coloca a cabeça para pensar (e não se trata de filme de "arte", "francês", "cabeça" ou "da Mostra"). Quem procura história (e quem acha que um filme bom necessita de historinhas) vai logo reclamar que o longa de Brian de Palma é enrolado demais, tem muitos personagens, não dá para entender direito quem faz o quê, quem é o culpado do quê.

O que não deixa de ser verdade. Certos personagens coadjuvantes vão aparecendo do nada, somem fisicamente em determinado momento e somem, principalmente, na memória do espectador, quando uma profusão de nomes volta e meia é pronunciada. Estamos todo o tempo às voltas com pistas falsas. Pode até parecer que é até mais um filminho qualquer sobre a investigação de um assassinato.

"Dália Negra" requer ainda uma certa dose de humor _e, para entender qualquer tipo de humor, é necessário, novamente, pensar. Ainda mais porque o humor de "Dália", filme extremamente sombrio, é sutil, quase imperceptível, ambíguo, enfim, são várias piadas internas, que não buscam a gargalhada.

Quem não enxerga o humor de "Dália Negra" provavelmente acha que clichês são um pecado mortal, e que usá-los aos montes em um filme o torna ruim. Filmes ótimos podem ser repletos de clichês, da mesma forma que um amontoado de clichês não tornam necessariamente um filme bom. Não se trata da quantidade, mas sim da maneira com que são usados.

Assim, De Palma une o clichê e o humor, numa espécie de sátira/homenagem a Hollywood. E esta indústria, seja a da era clássica, seja a dos dias atuais, é indissociável da idéia de clichê _um molde para reproduções infinitas, feitas ao gosto do espectador, para não correr riscos de flop nas bilheterias.

Costuma-se dizer que "Dália Negra" é um filme frio. Sim, ele é deliciosamente frio e calculista, como as piores "femme fatales". Ou então costuma-se dizer que acontecem coisas demais na parte final, que há um excesso de revelações, como se De Palma tivesse desleixado na montagem. Novamente, há, sim, uma certa ironia nisso tudo, e não há como não pensar em certas situações e personagens maneiristas que David Lynch insere em seus filmes _a série "Twin Peaks" é repleta delas_ ou nas conclusões dos antigos desenhos do Scooby-Doo, quando os mocinhos retiravam a máscara do vilão.

Sátira que fica evidente quando um dos personagem faz uma observação em relação à arte moderna, reprovando-a, já que o quadro em questão não representa a beleza clássica, mas sim as deformações da alma. O cinema moderno de De Palma relê o filme noir e seu imaginário, numa estrutura que de certa maneira caminha para o kitsch, e encontra um saudável ponto de conexão com o cinema psicológico de David Lynch.

Tudo em "Dália Negra" tem a ver com a irrealidade das ações, das falas, das verdades e mentiras da imagem. A cena inicial, de conflitos nas ruas, por exemplo, não faz questão nenhuma de fingir-se realista. São claramente atores em ação num estúdio. Veremos a Dália viva apenas na projeção de um filme vagabundo usado nas investigações de seu assassinato _ela não é um ser concreto.

Ou então o recurso da voz "off", necessária ao noir _Pensamentos e ações de Bucky narram o que veremos à frente, ou o que deveríamos ver_ e as "femme fatales", devidamente envoltas em nuvens de cigarros, que surgem conforme manda o clichê (uma delas é bissexual, a outra foi marcada em ferro). São mulheres malvadas, donas de falas geniais ("Me esforcei muito para ser uma vadia", ou algo do tipo, diz a personagem de Hillary Swank em determinada altura, "mas ela [a Dália Negra] tinha um talento natural para isso").

Não há verdade nas imagens, ou melhor, não há uma única verdade, e quem já reclamava que "Femme Fatale", seu filme anterior, era ruim porque tudo no final era "só" um sonho, vai reclamar novamente, já que De Palma retomou ao seu tema básico.

"Dália Negra" volta assim ao universo de tintas B de "Vestida para Matar" (e suas soluções psicológicas e a referência a "Psicose"), "Dublê de Corpo" (a imersão no universo pornô, a referência a "Janela Indiscreta" e a loira puta e fatal) e "Um Tiro na Noite" (novamente a puta, o imaginário invadindo o real e a referência a "Depois Daquele Beijo"). Assim como personagens desses longas anteriores, Dwight irá se sentir terrivelmente atraído pelo perigo e pelo mórbido, já que irá transar com a "femme fatale" Swank, espécie de duplo da moça assassinada e retalhada. A diferença é que, agora, trata-se de um cineasta com pleno domínio dos seus recursos. Com este filme, fica ao lado de cineastas que estão no auge, como Lynch e Almodóvar.
E, como eles, mantém um pé nada reprimido no "mau gosto" de seu passado, e encarna outro estereótipo, o do velho safado que perde de vez seus pudores.

Originalmente escrito para http://ilustradanocinema.folha.blog.uol.com.br/

1 comment:

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