Tuesday, September 25, 2007

Amor adora arte (e uma dancinha)


Ele e ela estão no museu.

Ele: É um lindo Jackson Pollock, não?

Ela: Sim, é.

Ele: O que esse quadro representa pra você?
Ela: Ele reafirma a negatividade do universo. O horroroso e solitário vazio da existência. O Nada. A difícil situação do Homem forçado a viver em uma eternidade estéril, sem Deus, como uma pequena chama tremulando num imenso vazio com nada além de dejetos, horror e degradação, formando uma inútil e fria camisa-de-força em um cosmos sombrio e absurdo.

Ele: O que você vai fazer no sábado à noite?

Ela: Cometer suicídio.

Ele: E na sexta?


Eu simplesmente adoro esse diálogo. Sempre que vejo, fico rindo que nem um idiota, como uma foca batendo palmas querendo receber mais sardinhas (tá, eu confesso que nunca vi uma foca batendo palmas, mas acho que você entende o que quero dizer, não?).

Essa é uma cena de “Sonhos de um Sedutor”, que no original se chama “Play It Again, Sam”, referência a “Casablanca”, claro. Não é dirigido pelo Woody Allen, mas é praticamente um filme dele. No filme, ele está desesperado atrás de mulheres, sofredor incorrigível (que pleonasmo!) e ninguém menos que Humphrey Bogart é seu consultor amoroso.

E lá vai nosso sofrido Woody Allen, encorajado por um casal de amigos, a paquerar em um museu. Ele vê a moça meio dark, existencialista fatal, e cola nela. E daí se segue esse diálogo inesquecível.

Eu adoro museus. De arte moderna, de preferência. Amo aquelas obras que os Manés falam: “Dãããããã, isso eu também sei fazer”. Amo coisas conceituais, que “qualquer um pode fazer, até meu filho de 5 anos”. Acho que é porque gosto de pessoas conceituais também....Deve ser um lugar ótimo de se paquerar. Moças interessantíssimas vão sozinhas. Moços lindos estão por ali. E sempre dá aquela sensação idiota de que todos, já que estão ali, são inteligentes. Mas que besteira! Pessoas inteligentes cansam às vezes, não? Sempre tem algum estudante ensebado, mas sempre também aquelas pessoas especiais, que batemos o olho e na hora sabemos que tem algo especial. Linda adora arte, já cantava Scandurra (você já ouviu “Amor em B.D.”, do disco “Amigos Invisíveis”? Ouça agora. Linda adora arte)

O fato é que a gente procura pessoas especiais, quando as pessoas especiais não estão por perto. Quer dizer, às vezes, elas estão do nosso lado, mas não conseguimos ver. Claro, tudo é perdoável, somos cegos por opção. Mas já que não conseguimos ver, vamos procurar em outros lugares, procuramos pessoas especiais em lugares especiais.

Não me esqueço de quando eu tinha uns 18 anos e tava voltando do ensaio da minha banda, quando eu tentava ter banda. O vocalista quis parar num Habib’s (tãããão 18 anos isso), comprar umas esfihas, era baratinho (tãããão 18 anos, nunca temos dinheiro pra nada) e, na fila, ele encontrou a menina dos sonhos dele. Ao menos fisicamente, claro. Mas é assim aos 18, não? Daí que ele foi lá, falar com a menina, jogou qualquer papo bobo. E ela só se limitou a torcer o nariz e dizer: “Ai, você tá me paquerando aqui na fila do Habib’s?”.

Na hora achei a menina de uma nojentice só. Chata, arrogante, metida. Até hoje continuo (hahaha) achando, mas tudo bem, agora eu entendo ela. Fila do Habib’s não é um lugar especial pra achar alguém especial, né? Mas que ela foi uma chata, ela foi. Imagina que lindo se eles tivessem ficado, e eles pudessem contar, aos risos, pros netinhos: “Sabe onde o vovô e a vovô se conheceram? Num lugar super tosco, onde serviam esfihas ensebadas!”.

E sempre lembro também de uma mulher que trabalha com minha mãe que ficou casada há uns 20 anos com um cara que ela conheceu no.....Metrô. Ela tava sentada naqueles bancos da plataforma, esperando o trem chegar, e o carinha achou ela bonita, sentou do lado e colou nela. Colou tanto que se casaram.

Eu acho que não tem lugar pra nada. Pode ser em qualquer lugar. O problema é a hora. Pode ser o melhor lugar do mundo, mas se não for a hora, pra ele ou pra ela, não vai rolar. Saco! Lugar a gente muda. Hora não dá pra voltar, ir pra frente, pra trás.... Sorte que sou capricorniano, tenho a maior paciência do mundo.

Por que ter paciência faz bem. Claro, não dá pra se acomodar. Numa coisa eu acredito. Gente desesperada só atrai gente desesperada. E gente desesperada fica legal só no “Lost”. Desesperada por um namorado, namorada, trepada, dormir de conchinha, ligar no dia seguinte, fugir no dia seguinte, andar de mãos dadas, dizer que tá com saudade, dar presente, levar pra jantar, séxu, séxu e mais séxu, e beijinhos na boca, desesperados por dar vazão à tanto amor, que nem rosto tem. Pros desesperados, qualquer rosto serve. Tô fora.

O fato é que as coisas fogem do tempo. Quando você está solteiro, sozinho, e não tá deprê, nem nada, quando tudo está Ok com vc, auto-estima lá nas alturas, curtindo uma solidão opcional (que é quebrada a qualquer instante, é só ligar para um amigo aqui, uma amiga ali, e abrir aquela garrafa de vinho lá em casa, ou sair pra dançar e dar risadas numa noite qualquer, e falar bobagens até de madrugada, e ficar de queixo doendo, e sem fôlego de tanto rir), você começa a se tornar brilhante. Sim, você brilha demais. Você fica bonita (bonito demais). Fica interessante demais. Todos olham pra você. E, desesperados ou não, ninguém vai te deixar em paz. Você é bom demais pra estar sozinho. E daí, quando você vê, você perdeu sua querida solidão. E ganha uma querida pessoa ao seu lado. E, oh, não, tudo começa de novo! Eba!

Sunday, September 16, 2007

I am a freak



A Nina tava me falando que só aparece maluco na vida dela. Mas que ela gostava de malucos, porque, no fundo, nós também somos malucos. Discordei. Eu disse que não era maluco. É sim, ela disse. Você é maluco também. A diferença é que somos malucos do bem. Tá. I am a freak. Quero beber menos para, nos momentos importantes, não estragar tudo. Outra diferença é que, para o maluco do bem, um tempo depois, tudo é motivo de risadas.

Saturday, September 15, 2007

Música me faz perder o controle




Tem música pra dançar, pra chorar, pra balançar os ossos. Música me faz perder o controle. Assim que é bom. Quem vai ser eu mesmo, se eu não for eu mesmo?

Tuesday, September 11, 2007

É tarde demais?




O tempo passa rápido demais, as coisas vão acontecendo, e às vezes eu sou tão devagar quanto uma tartaruguinha manca. E, aí, já aconteceu. E deixo de falar as coisas que importam, deixo de falar o quanto gostei de você. Mas daí já foi. A memória fica latejando, me relembrando, e quando tento falar o que não foi dito, você já não é a mesma.

Dos tempos do estado

Há uns cinco anos eu só tava lendo Caio Fernando Abreu. Devo ter lido tudo, eu estava monotemático. Meus amigos não aguentavam mais eu falando dele. Mas passou. Agora só tô lendo o Haruki Murakami (valeu, Simone).

Por isso não acreditei quando a Nina me contou que o Caio é supermoda nos fotologs. E lembrei que vivo tentando contar esse conto para o Edu, porque vamos almoçar só lá pelas 3 da tarde todos os dias, e já tão cansados e tão famintos, e rindo para acabar com a rabujentice que volta e meia ameaça aparecer. Acho que ele me entende. É um conto do Caio quando ele fazia crônicas no Estadão. E fiquei com saudades do tempo em que eu trabalhava lá, escrevendo no Zap!, que nem existe mais.

Passou, passou.

Mas dá uma lida.



Deus é naja (texto do Caio Fernando Abreu)

Tenho um amigo, cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos há muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.

Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele –humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou esta: -“Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim...” Descemos o elevador rindo feito hienas.

Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas. Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: -“Por favor, preciso de uma jamanta às 20h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque vai estar no bolso esquerdo da calça”. Às 20h14, na tal esquina (uma ótima esquina é a Franca com a Haddock Lobo, que tem aquela descidona), você olha para esquina de cima. E lá está - maravilha!- parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem um dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: -"Morro feliz. Era tudo que eu queria..."

Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor na barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na Praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu" - ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além da mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema - Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humour?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?

Deus é naja - descobrimos outro dia.

O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu, às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece - como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.

Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma jamanta. A mil por hora.

O Estado de S. Paulo, 15/07/86

Sunday, September 09, 2007

Feeling good - nina simone



Se um alienígena me perguntasse o que significa viajar, eu pediria para ele ouvir essa música.

Pocket films for travelers

Foto de Juliana Mundim



Tentar explicar por que viajar é algo tão necessário às nossas vidas é que nem tentar explicar o que é o azul. Ou tentar explicar por que é gostoso comer aquele doce. Ou por que é tão bom beijar aquela pessoa especial. Você encontra mil respostas racionais, mas essas serão apenas representações incompletas de experiências tão particulares.

Mas eu viajo pouco. Não sou um traveler como a Juliana. Tá, ela é uma amigona, e vale lembrar que best friend a gente só tem um, mas isso não invalida a minha dica.

Ela tem um projeto absurdo, que você TEM que conhecer, caso você realmente goste de viajar. Vai lá: http://www.pocketfilmsfortravelers.com . E quando digo viajar, não estou me referindo a você, que gosta de ir ao país estrangeiro para correr às lojas de bugigangas, ou que saca desesperadamente sua máquina em pontos turísticos, e se esquece de apreciar a paisagem. Se você for, nada contra também. Faz parte.

Mas estou falando de outro tipo de traveler, aquele que encara a viagem como uma busca pela identidade. Uma busca existencial. Eu tinha um amigo que sempre citava aquela frase, “A verdadeira viagem necessita de novos olhos, e não de novas paisagens”. Eu prefiro pensar de outra maneira: “A verdadeira viagem necessita de novos olhos, em novas paisagens”.

Acho que é isso que me fascina tanto e ao mesmo tempo me assusta nas viagens. E é isso que eu vejo a Ju captando tão bem no Pocket Films. Perca um bom tempo navegando lá. Tire um dia, uma tarde, uma noite, para fuçar cada cantinho do site. A Ju é uma traveler que já rodou o mundo várias vezes. É o projeto de uma vida. Em cada país que ela vai, ela coleta imagens, que aparecem em forma de fotos e vídeos no site. O Pocket Films é como se fosse um longo filme. E cada pedacinho do site faz parte dessa trama.

Mas, mais do que isso, ela vai captando estados de espírito. Ela vai deixando por ali músicas, desenhos e textos de uma poesia que consegue expressar aquela melancolia gostosa que sentimos quando viajamos. Você fica feliz de ver tanta coisa nova e bonita, e fica triste porque queria fazer parte de tudo aquilo, mas você não faz parte, e você vê como o mundão é tão grande, e você começa a lembrar de todos os seus pequenos problemas que ficaram lá para trás, mas não tanto para trás, porque um dia você tem que voltar.

Tudo é subjetivo na viagem. Se um alienígena me perguntasse o que é viajar, eu diria para ele escutar “Feeling Good”, da Nina Simone (lá em cima tem a música se você quiser ouvir).

O Pocket Films é meio isso. Ele dá essa sensação de arrebatamento, algo voraz. Quando você viaja, você deixa de ser um pouco você mesmo. Dá um alívio enorme às vezes, mas dá um pânico também. Viajar te coloca em perspectiva: você vê o quanto você é pequeno, ao mesmo tempo que reforça a sua individualidade e seu poder interior.

Te faz ver o quanto o que você acredita, o que você é, o que você pensa, é apenas uma opção possível. Te faz sentir criança de novo, já que quando você está num país estrangeiro, tudo é novo para você. Você consegue ver as coisas com novos olhos. Pânico e prazer de novo: não é fantástico chegar num país onde você não consegue entender um “a” do que estão falando, e onde você não consegue entender o que está escrito nas placas de trânsito? É um exercício enorme de humildade, e acho que todos precisam ser humildes no mínimo de vez em quando, se tornar um completo analfabeto em terras estrangeiras.

Você se sente criança de novo, e é como quando transamos com alguém querido, e nos entregamos sem vergonhas à brincadeiras particulares.

Não sei dizer se você volta mais sábio de uma viagem. Sim, temos sempre que voltar, sempre saímos de um ponto para outro. Senão, dizem, perdemos as referências, piramos um pouco, quando não temos raízes. No fundo é medo de você não ser mais você mesmo, e você perder uma das poucas certezas na vida: quem sou eu?

Eu tenho alguns favoritos no Pocket Films. Vai lá no Japão. Tem o vídeo Carol and the Dancing Scketch Book. Esse representa bem essa coisa que eu falei de se sentir criança, da beleza dessa idéia de pureza e sentidos virgens. Tem o Handome Man on a Windy Day: nesse, pra mim, vem essa sensação de melancolia bonita. Suportável portanto, mas que não deixa de apertar o peito.

Lá na seção Nova York, ouça os Podcasts com as músicas que a Ju selecionou. Tem o I Really wish we could hang out more (adoro esse nome!), e se a ficha não caiu, experimente ir um dia a Nova York e fazer um clássico na cidade: sair andando sozinho pelas ruas, com o iPod no ouvido. E sem medo de ser assaltado. Depois de andar por Manhattan de ponta a ponta, vá ao Brooklyn e passe o dia lá. Não tem turistas por ali. Como a Ju mesma diz, imagine se um bairro inteiro fosse como a Torre de quinta (isso no tempo em que a Torre de quinta era um pouquinho menos decadente, claro).

Ah, não deixe de passar pelo Cambódia. Lá você vai descobrir que os dinossauros sumiram da face da Terra não por causa de um meteorito que veio parar por aqui, mas sim porque eles estavam deprimidos, se sentindo muito solitários.

Depois me diz o que você achou do Pocket Films. I really wish we could hang out more.

Monday, September 03, 2007

Essa vida agitada



Ela vai encontrar.

Amor no osso



Quando nós terminamos, resolvi tirar uns dias de folga. Fiz uma voz de doente, liguei lá para o serviço, disse que estava com umas dores, sem especificar direito o que era. As dores, hoje, são tão genéricas, vêm de tantos lugares, que eles nem me questionaram. Mas eu estava mesmo doente, só não era uma doença oficialmente aceita.

Fiquei quietinha, sem sair de casa. Sem fazer barulhos, procurava me mover o mínimo possível. Se eu me mexesse, eu sabia que algo em mim quebraria. Resisti à tentação de ficar lembrando os últimos momentos, por que deu errado, o que eu tinha feito, o que ele tinha feito.

Em vez disso, preferi pensar sobre como seria meu próximo namorado. Ou amante, melhor, acho que namoro só de tempos em tempos. Não dá para emendar um no outro, né? Eles ficam todos parecidos uns com os outros quando a gente faz isso, eu acabo trocando os nomes e, no fundo, eu adoro sofrer um pouquinho, durante um tempo. Fico me sentindo chique. Solitária, mulher abandonada, abraçada na minha garrafa.

Decidi que, quando encontrar meu próximo amor, terá que ser um amor básico. Algo primitivo. Não, não estou falando de sexo. Quero que ele e eu sejamos apenas esqueletos. Não quero mais pele. Amor no osso. Na essência das coisas.

Não vamos nos maquiar tanto para nos amar. Não teremos mais faces, não teremos mais pêlos. Não teremos mais corpo, apenas uma estrutura primeira. Não vou olhar para seu corte de cabelo, você não vai olhar para as minhas roupas. Não quero saber quanto você ganha, porque enfim não teremos que trabalhar, vamos fazer apenas o que gostamos.

Talvez a gente não converse tanto, afinal, não teremos boca, nem garganta, nem pulmão, mas vamos transmitir pensamentos, isso eu tenho certeza. Nunca terei certeza de quando você estará me olhando no olho, porque não teremos olhos, e não precisarei escovar os dentes antes de te beijar, porque talvez a gente nunca chegue a se beijar.

E quando o desejo arder, se ele arder, iremos transar, mas quando a gente transar, vamos apenas ralar, e vamos fazer barulhos, porque seremos iguais em cima e embaixo, e então não teremos mais sexo. Mas vamos continuar nos encaixando, porque os ossos duram bastante, e não apodrecem tão rápido quanto a carne.

E o amor vai continuar, soterrado por camadas e mais camadas de terra, e seremos descobertos pelos arqueologistas do futuro, porque no futuro seremos artefatos do passado. Amores do passado.

Sunday, September 02, 2007

O tempo é um amigo precioso



Eles ainda me surpreendem. Deve ter sido o vigésimo shows deles que eu assisti, mas ainda assim, saio sempre emocionado. Sábado passado, lá no Studio SP, show classudíssimo do grande Cidadão Instigado. Show para muito poucos, ou poucos muitos, mantendo assim o clima gostoso de segredo entre amigos. Eles me emocionam. E as pessoas dançam, choram, e encontro amigos queridos. Sábado à noite tudo estava lindo, como um bom sábado deveria ser sempre. Não sou muito de reproduzir aqui as matérias que escrevi para o jornal, mas vai aqui uma exceção. Era um dos primeiros shows que eu via do Cidadão, eles tinham lançado um disco que entorta as pernas até hoje (foi em 2005, e a banda fazia uma temporada classe no Grazie a Dio!) e as pessoas estavam apaixonadas. Porque o tempo é um amigo preciso.
Aí vai:


Não há dia da semana mais cruel para a ressaca amorosa que a segunda-feira. Da paixão que atinge os píncaros do arrebatamento numa noite de sexta às brigas e o rompimento num sábado amargo, o cidadão que ficou instigado tem pela frente apenas a depressão de um domingo solitário. E os sobreviventes, estes ainda sentem o gosto do amor amanhecido na preguiçosa segundona em que a vida pessoal tem que dar passagem para a vida de trabalho.

Por isso, a chuva fininha, triste, que caía em São Paulo na noite da última segunda até parecia jogo de mise-en-scène. Era também o primeiro show da banda cearense Cidadão Instigado em temporada no Grazie a Dio!, na Vila Madalena, onde tocarão durante as segundas de novembro. Por ali, um coração dilacerado chamado Fernando Catatau irá cantar as músicas de um dos melhores discos do ano, "Cidadão Instigado e o Método Túfo de Experiências".

Catatau conhece o espírito mutante do amor. No palco, recombina códigos da música popular. Parece perguntar: "Afinal, o que é o brega?". Entra, assim, sem pudores, no quartinho da empregada, quando canta "Te Encontra Logo..." e esbarra em Roberto Carlos. O músico franze a testa e fecha os olhos -larga a guitarra para colocar as mãos no peito. "Não quero estar recuando o meu sentimento e a minha alegria/Acho que estou te esperando/ o que talvez você já saiba." Ele sofre.

O músico sabe que a paixão é fugaz. Quando ela se vai, resta cantar e relembrar, para além das dores de corno. Por isso, o músico celebra os últimos instantes antes da putrefação. Por isso, uma canção como "Os Urubus Só Pensam em Te Comer". O arrebatamento pode ser esquisito, por isso uma música experimental sobre "vacas que estão velhas e loucas".

O amor altera mentes tranqüilas. Vai encontrar lá no inconsciente prazeres até então desconhecidos. "Preciso de um pouco de água com açúcar para me tranqüilizar", o desesperado Catatau pede na roqueira "Calma!" O cenário só se completa quando a iluminação reflete bolinhas de luz de um globo no teto. Somos transportados para a mais cafajeste das churrascarias, onde casais suspiram ao som de clones do Rei. Depois, um telão no palco vai mostrar imagens congeladas do público e da banda. Estamos em um baile de debutante e acreditamos em príncipes encantados.

No seu mergulho nos meandros do coração e da canção popular, a banda encontra o universal. Para o Cidadão Instigado só resta pensar sobre "O Tempo", que promete cura para todos os males (inclusive o escasso sucesso comercial). "Já não sou mais o menino que você deixou/o tempo é um amigo precioso/ que faz questão de jogar fora/aquela mágoa vencida." E assim termina a experiência que foge à todas as regras e pela qual todos adoram ser cobaias.