Sunday, May 27, 2007

Moço bonito numa tarde de vento


Ela quer saber se os gatos têm memória. Já passou do teto branco às experiências de transmissão de pensamento.

Eles entendem, já ouvi dizer. E, não me lembro bem, eu já li em algum lugar sobre a memória dos gatos. Eram eles que guardavam apenas as lembranças mais imediatas? Ou seriam eles realmente clichês ambulantes, misteriosos, cheios de segredos e sabedoria? Não queria que meu oráculo fosse um felino.

Não me lembro. Li em algum lugar, em algum dia, em alguma revista. Qualquer informação me basta.

Mas gatos são leves, de uma leveza não só física, o limite não são os muros altos e os telhados e o mundo inteiro à disposição, e as brechas facilmente abertas, visíveis apenas para quem é muito rápido.

E leve.

Se lembrassem de tudo, pesariam. Não conseguiriam se mover, como se entupidos da mais assassina das lasanhas, e atolados na cama de gato mais aconchegante, comprada na loja de animais mais nova do bairro. Eles seriam pesados, como todos nós. Não queria me lembrar mais. Não existe memória seletiva.

A minha glória, em dias sem teto branco para olhar. A minha desgraça, em dias sem céu azul. Nesses dias, sonho com um novo começo diário. O dia em que todos os dias pudessem ser como a noite de Ano Novo. Uma vida inteira jogada para trás, apenas novas possibilidades a partir de agora.

Mas sempre tem um pequeno ato alheio, o refrão de uma música, um olhar de relance para me relembrar do teto branco. Tudo volta. Tenho saudades do moço bonito naquela tarde em que ventava tanto. Tudo muito simples, ainda não havia um passado, dias de construir o presente.

E nunca mais, quando nos lembramos, construímos o dia-a-dia. Esquecemos.

Algum dia será tudo memória. Histórias que apenas eu e ele sabemos, que por uma fração de segundos, algum dia tentaremos relembrar, e não saberemos se estamos apenas inventando. Retocando, você prefere dizer, porque aí tudo deslizará mais fácil, tudo perderá a sua tensão, e nada mais doerá como antes.



Monday, May 21, 2007

Vida de espera


Hachiko chegou em Tóquio em 1924, pouco depois de nascer, em Odate. Era um cão Akita, prestes a conhecer e a se perder na cidade grande. Seu dono era o respeitável senhor Hidesamuro Ueno. Um homem bem metódico, do jeito que os cães e sua natureza essencial, repetitiva e quase mecânica, tanto apreciam. Trabalhava como professor na Universidade de Tóquio, no departamento de agricultura. Homem que amava a natureza e os bichos. Tivesse vindo para o Brasil, provavelmente moraria no interior de São Paulo para cultivar tomates, alfaces e muita cenoura.

Mas o sr. Ueno nunca teve a necessidade de sair do Japão por questões econômicas. Nunca saiu do país. Pra falar a verdade, nem chegou a ver a Segunda Guerra. Ele era um homem que gostava de paz.

O cãozinho do sr. Ueno não se diferenciava dos seus semelhantes e devotava ao seu dono aquela fé adorável e algo tola e muito feliz que apenas os seres que amam demais e questionam de menos podem ter. Dia após dia via seu dono sair de casa, de manhã, para ir trabalhar. No fim do dia, Hachiko não segurava a ansiedade e ia de encontro ao seu dono, perto da estação de trem de Shibuya, onde o sr. Ueno desembarcava para, acompanhado de seu cão, retornar ao lar.

Dias felizes, de um cotidiano ordinário, comum, de um homem solitário, amante dos cães, das alfaces e dos tomates. Um professor honrado, que encontrou o equilíbrio naquele cotidiano tranqüilo de calmos dias sem guerras.

Mesmo longe das balas e do campo de batalha, o sr. Ueno não podia escapar da sina de todos os que um dia nasceram e do dia-a-dia obediente que segue à risca a ordem natural das coisas, da tradição genética, cultural e ancestral. Como todos os outros donos de cachorros, como todos os professores, como todos os amantes da natureza, o sr. Ueno sucumbiu à sua natureza de ser humano e morreu. Desgaste natural das suas funções biológicas.

Hachiko não entendeu direito o que estava acontecendo. Ele tinha pouco mais de um ano, mas, mesmo se tivesse mais idade, não entenderia. Mesmo que não fosse um cachorro, não aceitaria. Seria muito mais fácil viver naquele mundo particular, imune ao que estivesse acontecendo na realidade conhecida como a normal.

O sr. Ueno, que odiava quebras no seu cotidiano, não voltou para casa. Morreu lá mesmo na universidade. Deve ser algo bem estranho não voltar mais para casa.

A casa continuou lá, apenas mais solitária, e Hachiko ficou aquela tarde na estação de trem, esperando pelo sr. Ueno. Pela primeira vez em sua vida, o sr. Ueno dava um bolo, e não comparecia a um encontro.

Hachiko não entendeu nada. Em sua jovem mente, já estava programado, de forma indelével, aqueles encontros diários.

Arrancaram de Hachiko a sua paixão por regras cotidianas. E Hachiko não tinha mais para quem devotar toda a sua atenção e aquilo que se convencionou chamar de amor.
Hachiko continuou aparecendo todas as tardes. Quem sabe o sr. Ueno não apareceria, de repente, o maior atraso de sua vida, todo atrapalhado e pedindo desculpas. “Fui comprar cigarro, mas não tinha a minha marca”, ele diria, para reprovação de Hachiko, que não entenderia por que, àquela altura do campeonato, seu dono resolvera entrar para o mundo dos fumantes. Naquele tempo, havia apenas o mundo dos fumantes e dos não-fumantes.

Durante 11 anos Hachiko continuou indo à estação de trem. Muitos ficaram comovidos. Quem acreditava no coração, via em Hachiko um exemplo único de amor e fidelidade ao ser amado. Estas pessoas acreditam que o ser humano tem muito a aprender com os bichos. Outros, que acreditavam mais na mente, acham que os bichos apenas imitam o ser humano. Ou melhor, que humanos também são bichos, no final das contas, e que certos atos de ambos são muito parecidos, o que acaba dando mais ou menos na mesma. Para estes, Hachiko até amava seu dono, mas amava muito mais aquele monte de restos de comida que os que acreditavam no coração, emocionados, davam para o cão persistente. Hachiko morreu de barriga cheia e com um sorriso no rosto.

Seja o dono morto, seja a comida, Hachiko amava algo. Talvez já no fim da vida tivesse apenas uma vaga lembrança dos carinhos do sr. Ueno. Sua ida diária à estação de trem já tinha outros significados, outras motivações, e chegou um momento em que Hachiko ia para lá apenas porque tinha que ir.


Como Adèle H., a filha de Victor Hugo, que, largada pelo amante, continuou durante anos obcecada pela sua paixão, até que a obsessão virou loucura, o rosto do amante, uma vaga lembrança, e o amor, uma entidade ainda mais abstrata, auto-sustentável, descolada de uma referência real. Quando, muitos anos depois, cruzou por acaso com o ex-amante na rua, não o reconheceu. Ela se lembrava de que amara alguém, algo, mas nem sabia mais quem era o foco de tanto amor. A fome de amor continuava, mas ela se tornara impossível de ser saciada.

Hachiko continua lá, na estação de trem. Os que o amavam ergueram uma estátua, à saída da estação de trem de Shibuya, em sua homenagem. Shibuya é um dos bairros mais decolados e modernos de Tóquio. É nele que tem aquele cruzamento absurdo que aparece em tudo que é filme e cartão-postal de Tóquio.


Quando abre o sinal para os pedestres, surge uma multidão de todos os lados. É fácil se perder no meio da multidão, enquanto os olhos e os ouvidos ficam hipnotizados pelos luminosos e coloridos prédios gigantes. Neste cruzamento, a expressão “apenas mais um na multidão” ganha novos significados, porque é isso mesmo, literalmente. Você perde seu rosto.

Os jovens dominam Shibuya. Todos com os melhores cortes de cabelo e as roupas mais adoráveis, à procura de amor, querendo ser vistos por alguém, admirados por qualquer coisa que seja. Não ser apenas mais alguém com cabelos pretos e olhos castanhos.

E a estátua de Hachiko é o principal ponto de encontro dos jovens. Todos marcam seus encontros com os amigos, amantes, ficantes, inimigos, usando a estátua de Hachiko como ponto de referência.


Durante todo o dia, Hachiko continua sua vigília, enquanto dezenas de jovens ficam lá, solitários durante eternos minutos, enquanto aqueles por quem esperam não chegam. Ficam concentradíssimos em seus mais modernos celulares, enviando enlouquecidamente dezenas de caracteres em mensagens de textos.


Muitos voltarão para casa sozinhos, ou irão ao bar sozinhos, para conhecer outras pessoas.


O grande problema é que Hachiko nasceu numa era em que não existia telefone celular. Por isso ele espera e sabe que seu grande amor nunca iria lhe abandonar.

Wednesday, May 16, 2007

100 pernas



Tinoko já fazia parte da mobília de casa. Chegando tarde, cansado e esfomeado, achava perda de tempo preparar alguma coisa para comer. Achava desperdício de energia arrumar a cama. Vou acordar amanhã cedinho mesmo, ele decorava sempre os mesmos argumentos, está tão de noite, deixo pra comer amanhã. Já treinei meu estômago. Vou dormir tão pouco mesmo, pra que cama? Além disso não quero poluir meu travesseiro.

Ele já era parte da mobília de casa, e sua especialidade era se transformar no Homem-Sofá. Tinoko era um verdadeiro camaleão, adquirindo a capacidade de se confundir com o meio. A harmonia com o ambiente ao seu redor era tão grande que, às vezes, se esquecia de existir. Mas ele garante que, quando some durante o sono, e apenas o velho e desgastado sofá aparece solitário na sala, com aquele buraco e sua mortífera mola-osso exposta (e lembrar que tudo começou com uma inocente bituca de cigarro), ele está invisível apenas para os olhos de Tonika.

Tonika, já no final da história, queria apenas um lugar quente e macio para apoiar a cabeça. Servia um sofá com a mola-osso exposta, servia a coxa de Tinoko, a essa altura já um molde vivo da cabeça de Tonika. A cabeça de Tonika em sua coxa já fazia parte de seu ser, do mesmo modo como ele era um pedaço daquele sofá, daquela sala, daquela casa.

Mas Tonika vai partir e terá que achar um novo sofá. Tinoko não sabe bem o que fazer com a sua coxa, que carrega um molde único, agora inútil. Até amputaria a perna caso não precisasse dela para outras coisas.

Provavelmente Tinoko terá uma paisagem ainda maior pela frente. Poderá se transformar em sofá, em cama, em geladeira até. Terá então várias noites para não preparar o jantar, e não arrumar a cama, porque vai acordar cedo mesmo, e é perda de tempo se preocupar com detalhes tão breves, se a noite é curta assim.

Tinoko terá que fazer uma bela faxina. Terá que revirar seus armários, esvaziar suas estantes, colocar suas roupas para tomar um pouco de sol. Tinoko tem que ouvir de novo seus velhos CDs, reencontrar os livros que moldaram sua vida e fazer as primeiras sessões de cinema de sua coleção particular. Tudo para tentar se lembrar de quem era antes de se transformar no Homem-Camaleão e quem, afinal, largou aquela bendita bituca.

Sunday, May 13, 2007

Talvez amor


Esperei tanto por você e não me incomodei quando, enfim, você não apareceu. Apenas tentando deslizar suavemente, já que parecia tão fácil, eu apenas ia imitando e tentando fazer igual, mas você nunca mais. Passou tanto tempo, e já não me lembrava se eu era uma pessoa caída que às vezes se levantava ou se ficar de pé era meu estado natural, e a queda, apenas ocasional. Tudo estava agradável agora. Tudo já era conhecido. Alegria generosa. Tranquilo, sem dor. Tentar imitar, não é sempre assim? Os primeiros passos, a primeira escrita. Só tenho dúvidas em relação ao primeiro som. Quer dizer, o primeiro som aqui, do lado de fora, o berreiro. Quem é que estamos imitando então? É um instinto tão primeiro, tão primitivo, que já vem gravado dentro da gente? Programados? Quando enfim você chegou, eu não sabia se era você. Mas isso é o que menos importava. Quis abrir o berreiro, lembrar os velhos tempos. Não conseguia mais lembrar seu rosto, uma vaga lembrança do seu cheiro. Eu também tinha algo para te contar, mas não fazia mais a vaga noção do que eu queria tanto te contar. Talvez amor.