Sunday, June 04, 2006

Roupas para a festa

Quando se sentia só, vestia sua melhor roupa de sair. E esperava. Quando se sentia extremamente só, vestia sua melhor roupa de sair e caprichava na maquiagem. E nada passava. Quando a solidão deixava de ser uma sensação incômoda para se tornar sua verdadeira e única roupa, um espelho de corpo inteiro não bastava. Poderia até ir ao cabeleireiro, se naquelas horas eles existissem, cortar os cabelos bem curtos quando as longas madeixas se tornassem grandes empecilhos à sua vida, mas as novas roupas nunca lhe cairiam bem. Tinha apenas a sensação. E passaria longos minutos olhando pela janela, à procura de alguém que ela nem reconheceria mais se um dia encontrasse. O ato era reflexo, automático, após aqueles dias em que procurava por ele e não o encontrava em nenhuma hora do dia, da noite, em nenhuma rua que seu campo de visão lhe permitisse enxergar. Mas ela nunca estava sozinha de fato, o quarto até que era grande para ela, e as caixas espalhadas pelo chão eram profundas. E lá de dentro encontrava cartas e relia as cartas nunca enviadas, e as misturava com as cartas devolvidas, no meio das cartas que ele lhe escrevera, e as letras se fundiam, e as datas se apagavam, e as tintas de diferentes canetas, de diferentes cores, de diferentes tempos (tempos mais felizes?), se cruzavam e se borravam, ilegíveis a cada novo surto de depressão compartilhada que ela encenava na quitinete, e as cartas inventadas iam descrevendo fatos que nunca aconteceram de fato, coisas que poderiam ter sido, e nunca foram porque nunca tiveram espaço para realmente acontecer, e você pode dizer que foi ela quem nunca quis de fato que acontecessem, e você pode talvez acreditar que foi ele quem nunca a entendeu de fato, e ela pode achar que eles nunca tiveram uma conversa de verdade, mas o que acontece é que naqueles momentos em que ela se permitia um surto de solidão e deixar de lado as criancinhas famintas no sinal pedindo dez centavos e os homens caídos na rua pedindo pelamordedeus uma ajudinha, ela colocava sua melhor roupa de sair e caprichava na maquiagem e até tentava fazer um rápido corte improvisado no cabelo se retorcendo na frente do espelho para conseguir acertar a tesoura. Reunia todas as promessas e acusações de todas as cartas entulhadas naquela caixa profunda, daquele quarto nem tão grande assim e imaginava que estava indo para uma festa. Não havia telefone para tocar naquele quarto, e há muito tempo ela não saía, e sua caixa postal era um mistério, mas tem vezes em que as roupas de sair pedem sua presença, e as roupas de sair não podem ficar muito tempo trancadas no armário, então ela se prepara para a festa de sua vida, mesmo que não haja festa nenhuma lá do outro lado da porta, naquelas ruas em que ele nunca mais estará, porque afinal a vontade de celebrar é grande, e os motivos são detalhes pequenos de nós dois, isso no velhos tempos, e agora não sou mais dois, eu sou mais um, como nem me lembrava mais, porque a vontade de me tornar um zero é sempre uma tentação a atormentar.